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Um escritor fora da rede


Há três anos, P ganhou importante prêmio literário nacional, o que lhe possibilitou a publicação de seu primeiro livro por importante grupo editorial. Passou um ano intenso em 2018, viajando e participando de vários eventos de Norte a Sul do Brasil. Era a vida que pediu a Deus: divulgava o romance, vendia vários exemplares, viajava com tudo pago e ganhava cachê nos eventos.

Seus amigos no Facebook (FB) se multiplicaram. De trezentos, saltou rapidamente para 5 mil. Volta e meia, precisava fazer um rodízio, tirando uns e colocando outros estratégicos no lugar. Após receber algumas orientações da assessoria da editora e de sua agência literária, percebeu que o engajamento dos amigos virtuais guardava relação com a frequência de seus posts e interação com a publicação de outros.

Passou a postar regularmente suas ideias, fotos do livro, e a compartilhar toda e qualquer resenha (pouco importava a qualidade, valia mesmo mostrar que o livro era lido e poderia ser de interesse de outros leitores). O que mais fazia era curtir sem ler as postagens de outros escritores. Dava os parabéns nas datas de aniversário e na celebração de pequenos feitos de seus amigos de labuta literária. As publicações de P no FB alcançavam facilmente centenas de curtidas. Animava-se, folgava-se. Fazia-lhe bem o sucesso, a boa fama.

No trabalho a que se dedicava, era um servidor público em cargo cobiçado, mantinha o serviço a duras penas. Enquanto em sua alma a literatura, a rede e o sucesso ardiam em um fogo que arde sem se ver. “Ainda bem que existe o celular e tudo pode ser resolvido na palma da mão. É muito útil, muito útil...”, pensava habitualmente. Sem se dar conta, passava mais horas cuidando da vida do escritor P do que dos processos do servidor PCD. Pouco importava...

Em 2019, um revés: a rede social FB reprogramou seus algoritmos, prometendo o bem-estar dos usuários. As publicações individuais passariam a ser vistas por menos amigos. De maneira solidária, pensou com seus cabelos bem alinhados: essa medida vai afetar os escritores pequenos...

Sua primeira publicação após a modificação algorítmica do FB lhe preocupou um pouco. Bolou um post irresistível: “É muito bom saber o que os leitores pensam sobre um romance que passamos meses escrevendo. Acesse o perfil da K no Instagram e leia a resenha completa. Obrigado, @K, pela leitura maravilhosa!” Durante o dia, ficou angustiado... Como assim, apenas 80 pessoas curtiram?! Decidiu no dia seguinte mudar a estratégia. Era dia de TBT. Escolheu a foto do dia do lançamento do livro premiado: “Até hoje sinto um gostoso arrepio ao lembrar desse dia...”. As horas se passaram, acessou quase de 10 em 10 minutos o FB, esqueceu as filhas, a mulher, o trabalho há muito esquecido... Monitorou a rede. Adormeceu na cama com o celular na mão, repousado sobre o estômago. No dia seguinte, a confirmação: apenas 23 curtidas.

Refletiu, refletiu... Já sei. Preciso de uma frase de efeito para impressionar. Sem ideias, abriu ao acaso um livro de teoria literária...Pronto! Eureca!... Afoito, com as mãos tremendo, ansiosas, copiou do e-book um trecho e postou como ideia sua: “Estive pensando...O erro mais comum dos leitores de literatura é ir diretamente ao que diz o poema ou o romance, deixando de lado a maneira como se diz. Ler desse modo é abandonar a ‘literariedade’ da obra”.

Uma hora depois, uma professora de teoria literária da USP, comentou: “P, este é exatamente um trecho de Terry Eagleton no livro ‘Como ler literatura’!”. Acrescentou ao comentário um emoji nada amigável. Alguns minutos depois, um outro professor espezinhou o escritor: “P comete plágio no FB. Seria seu afamado romance um plágio? Exigimos explicações...” Esta mensagem começou a circular.

Alguns amigos de P já desfaziam a amizade. Outros tentaram descurtir postagens antigas, para desvincular a imagem. Uma blogueira de sucesso cancelou imediatamente a live programada com P, alegando mudança na agenda. O manager da Bienal retirou seu nome da programação já divulgada. Um leitor postou foto com uma tesoura na mão pronta para recortar a capa do romance premiado. Para breve, um professor da Unicamp prometia fazer contato com Terry Eagleton, seu amigo pessoal, contando o ocorrido, para as medidas cabíveis. Era inevitável que P viesse a público esclarecer os fatos...

A agência literária e a editora também fizeram contato com P e exigências. Antes da manifestação do escritor P, colocaram breve notas em seus múltiplos perfis nas redes, sem mencionar os fatos, ressaltando que plágio é crime e não se coadunam com essa prática.

Até o final do dia, P já havia perdido mais de 1000 amizades virtuais. Ficou acabrunhado, com o coração opresso. Mal conseguiu dormir à noite, escreveu e reescreveu um longa nota de esclarecimento. Nunca a mão havia pesado tanto na escrita. O peso da pluma do romance era infinitamente mais leve.

Logo nas primeiras horas da manhã, publicou a nota de esclarecimento. Não teve efeito prático algum. A repercussão do plágio tinha mais força e avançava descontrolado feito um tsunami. No segundo dia, quase dois mil amigos a menos. Apenas 10 pessoas curtiram a nota... No celular recebeu a informação, em notícia de um portal conhecido, que seus livros estavam sendo retirados das prateleiras das livrarias.

Mesmo tomando a medida radical de impulsionar de forma paga a nota de esclarecimento, P sentia o martelo do cancelamento social batendo em sua própria cabeça. No terceiro dia, perdeu mais mil amigos.

Num gesto tresloucado, começou a enviar a nota de esclarecimento de maneira privada a cada amigo que ainda permanecia “do seu lado”. Na centésima primeira tentativa de repetir a mensagem pessoal, os algoritmos de segurança da rede social consideraram aquele um comportamento nocivo. Logo, na tela, piscou um alerta de que a atitude era suspeita e quebrava as regras de privacidade da rede. Mesmo assim, insistiu. Automaticamente seu perfil foi suspenso por quinze dias.

Só restava a P reconstruir a reputação em outras redondezas da vida em rede...

 

* Ilustração: “Faux nez pour mardi-gras”. Les Belles Images, Paris, 22/06/1906. Acervo Gallica/BNF.

 

RAFAEL VOIGT, editor da revista Voz da Literatura.


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