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Tell all the Truth but tell it slant –

por Natalia Helena Wiechmann*


Volto à poesia de Emily Dickinson depois de alguns anos e, como se fosse algo desconhecido, surpreendo-me novamente com a delicadeza de seus versos pungentes e a sensibilidade aguçada de sua inteligência. Ao folhear um volume de poemas, deparo-me, então, com estes versos, tão familiares e ao mesmo tempo impactantes, não importa quantas vezes eu os releia, e para os quais proponho uma interpretação:


Tell all the Truth but tell it slant –

Success in Circuit lies

Too bright for our infirm Delight

The Truth’s superb surprise

As Lightning to the Children eased

With explanation kind

The Truth must dazzle gradually

Or every man be blid – [1]


Neste poema Emily Dickinson nos fala de uma Verdade e inicia seus jogos de palavras com uma estrutura verbal que denota uma ordem, uma autoridade: diga a verdade, de modo imperativo, porém que essa verdade seja dita indiretamente. Parece contraditório? Não para uma poeta que subverteu a norma em incontáveis aspectos da vida e da poesia e, assim, colocou-se no panorama da literatura ocidental como uma das maiores vozes de inovação poética.


Esse modo de dizer a Verdade – slant[2] – implica que ela seja acessada sem revelar diretamente qualquer potencial transgressor de suas palavras, o que é, de fato, uma estratégia de criação poética, pois em seus poemas as alegorias, metáforas, a ironia, e tantos outros recursos nos levam à compreensão das camadas de significação de seus versos – suas Verdades – aos poucos. Para alcançar essa Verdade, cabe ao leitor ser capaz de captar o caráter simbólico dessas estratégias de escrita criadas poeticamente.


Eis que se afirma então: “Success in Circuit lies”. Circuito, aqui, é metáfora do dizer indiretamente, pois implica um modo de discurso ou de pensamento em rodeio, de modo circular. Em outras palavras, o eu-lírico parece reafirmar sua concepção de que o sucesso em dizer a Verdade depende de que se utilize uma expressão cuidadosa e menos direta. E o que concluo, com isso, é que me parece ser essa a motivação de seus quase dois mil poemas: usar uma forma indireta de expressar suas Verdades para, aos poucos, desestabilizar sentidos pré-estabelecidos social e literariamente.


Na sequência do poema, uma nova imagem é criada para que a afirmação inicial do eu-lírico seja melhor compreendida: “Too bright for our infirm Delight / the Truth’s superb surprise”. A iluminação do conhecimento que a Verdade proporciona é radiante demais para o deleite enfermo do ser humano, que não está acostumado ou que não pode encarar a verdade sem um filtro protetor para suavizar seus efeitos e, por isso, seu prazer é fraco, instável e não acompanha a surpresa de uma verdade dita às claras, com intensidade.


O que se confirma em seguida é que o poema, que defende o uso de uma linguagem indireta, metafórica e alegórica para tratar das questões que, a olhos nus, são difíceis de suportar, constrói-se dessa mesma forma, isto é, utilizando-se desses mesmos recursos. Isso fica evidente na comparação entre o modo como se deve expor a Verdade e a forma como se explica o poder letal de um raio a uma criança: assim como a explicação desse fenômeno natural deve ser feita com linguagem amável para evitar o medo na criança, o mesmo cuidado deve ser tomado para que a surpresa da Verdade não se torne fatal ao homem. Por outro lado, se o raio não tem poder suficiente para ofuscar a visão, o brilho irradiado pela Verdade é infinitamente maior, capaz de cegar aqueles que não conseguem lidar com ela. Então ressurge em minhas divagações a dúvida: somos capazes de lidar com a poesia de uma mente tão peculiar? Na clausura escolhida por Dickinson, eram seus versos intensos demais, “too bright for our infirm Delight”?


Ao final do poema o eu-lírico afirma: “The Truth must dazzle gradually / Or every man be blind – ”. Novamente, vemos uma aparente contradição, uma vez que dazzle necessariamente se refere a um brilho intenso que ofusca a visão e, por isso, não poderia ser oferecido gradualmente a uma pessoa. Estabelece-se, com isso, uma tensão de sentidos entre os vocábulos dazzle e gradually que sugere, por um lado, a necessidade de que a verdade seja dita aos poucos, mas, por outro, a impossibilidade de conter seus efeitos.


Outra característica importante que salta aos olhos (e aos ouvidos atentos) nesse poema diz respeito à recorrência da rima final em lies, Delight, surprise, kind e blind, enfatizada pela sonoridade de bright e Lightning. O resultado é uma melodia cadenciada agradável e até mesmo simples, didática para a compreensão do leitor. Entretanto, essa aparente simplicidade sonora se opõe à densidade do tema desenvolvido no poema – a Verdade como uma questão da existência humana – e corrobora para que se reforce a idéia central, pois a verdade que o poema nos oferece chega ao leitor disfarçada pela docilidade rítmica.

Por fim, penso ser possível também estabelecer um paralelo entre a interpretação proposta aqui e o modo próprio de apreensão dos significados em poesia, cuja característica principal é não ser referencial, isto é, a poesia não se prende à comunicação de uma verdade de modo direto e linear como ocorre com outros tipos de linguagem literária; ao contrário, ela recorre a elementos (tais quais as figuras de linguagem e os recursos sonoros) que subtraem dela a função comunicativa para que o poema se volte para o efeito estético de cada signo lingüístico que o compõe. Assim, a poesia também diz sua verdade de modo oblíquo para que, em vez de cegar, possa sensibilizar.


Concluo sugerindo que o poema escolhido para este texto expressa nitidamente o poder da poesia de Emily Dickinson de manipular a forma como algo é dito para que suas possibilidades interpretativas sejam acionadas pelo leitor a depender de sua capacidade para enxergar a Verdade, pois os sentidos contidos em seus versos parecem não estar ao alcance das palavras. Não é sem motivo, portanto, que sua obra permanece até hoje suscitando admiração em seus leitores ao colocar em xeque nossa forma de ler diante de tamanha autenticidade poética.


 

[1] Poem J1129. In: DICKINSON, Emily. The Complete Poems of Emily Dickinson. Organização de Thomas H. Johnson. Boston: Black Bay Books, 1976. [2] De acordo com o Emily Dickinson Lexicon, esse termo pode ser lido como suavemente, sensivelmente ou, ainda, respeitosamente.

 

NATALIA HELENA WIECHMANN é Doutora em Estudos Literários pela Unesp e professora do Instituto Federal de São Paulo. Autora do livro A questão da autoria feminina na poesia de Emily Dickinson (2015).

 

Cartas para Emily Dickinson_Voz da Literatura_jul2021
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