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TEATRO | Mitos, por quê?

Atualizado: 9 de ago. de 2018

por Sonia Pascolati


Por mais que dois milênios nos separem das origens do teatro ocidental, na Grécia, a presença da tragédia, do trágico e dos mitos na contemporaneidade nos aproxima do rito performático das dionisíacas. De fato, o legado da tragédia grega marca profundamente toda a história do teatro, alimentando nosso imaginário tanto com o sentimento do trágico, recorrentemente ressignificado, quanto com figuras emblemáticas de Édipos, Medéias, Antígonas e Ifigênias.


Também o romeno Matéi Visniec (1956- ) assume-se herdeiro dessa tradição ao lançar o grito dramatúrgico-teatral Por que Hécuba (original em francês e tradução brasileira pela editora É Realizações, ambos de 2014), texto em que a rainha destronada de Tróia é retratada especialmente como a mãe que perdeu todos os filhos para a guerra – nem mesmo Polixena é poupada, pois casa-se com a morte ao juntar-se a Aquiles – e cujo drama serve como divertimento para os sádicos deuses do Olimpo.


Editora É realizações | 2014 | 112 p.

Visniec utiliza o metateatro para denunciar o sadismo dos deuses: conduzido pelo Coro, o sofrimento de Hécuba é dado em espetáculo a Zeus, Hera, Poseidon, Hefesto, Afrodite, Hermes, Atenas e Apolo. Não bastasse a intensidade do sofrimento da mãe circundada por dezenove montes de cinza – cinzas que são penosamente engolidas por ela, num gesto que devolve ao útero os filhos perdidos para a guerra –, os deuses querem (re)ver o espetáculo de sua dor sem dar-lhe o direito de protesto, uma vez que Hera lhe oferece hidromel como forma de secar-lhe a voz: a boca de Hécuba se abre, mas o grito não tem som.


Hécuba é a representação da maternidade destruída pelas guerras, antigas e contemporâneas, especialmente aquelas a que a religião serve como pretexto. Em tempos de imediatismo midiático, em que a destruição é transmitida ao vivo e em cores, vivemos o paradoxo de termos a guerra mais próxima, porque vista em real time, e mais distante, porque mediatizada e espetacularizada, como os deuses fazem com o aniquilamento de Tróia.


A antiga rainha, agora serva, lança seu grito emudecido: por que ainda continuamos escravos das guerras? E ele ecoa em nosso ouvidos moucos... Nós que pouco aprendemos com a cegueira de Édipo, derrotado pelo próprio orgulho da invencibilidade, e com a ambição de Jasão, que impele a dura vingança de Medeia pelo filicídio. Nós que fechamos os olhos para o sacrifício de Ifigênia, necessário para que bons ventos façam o extermínio singrar os mares, e o de Antígona, aquela que perde os irmãos um pelo braço do outro, sempre na disputa pelo poder.


Visniec quer nos falar sobre o nosso próprio tempo e para isso nos faz reencontrar Hécuba. O retorno ao mito é um dos caminhos trilhados pelo teatro contemporâneo para apontar para o presente e reafirmar a vocação política do teatro.


{n. 4 | agosto | 2018}

 

{SONIA PASCOLATI é docente da Universidade Estadual de Londrina (Paraná) e pesquisadora na área de dramaturgia e teatro.}

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