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MÚSICA | Raphael Rabello: o violão em erupção

Atualizado: 9 de ago. de 2018

Entrevista com o jornalista Lucas Nobile, biógrafo de Raphael Rabello

A {voz da literatura} conversa com o jornalista LUCAS NOBILE, autor da biografia sobre o violonista Raphael Rabello (1962-1995), Raphael Rabello: o violão em erupção, recém-lançada pela Editora 34 e que contou com o apoio do programa Rumos do Itaú Cultural. Lucas Nobile é autor de Dona Ivone Lara: A Primeira-Dama do Samba (Editora Sonora/Musickeria, 2015) e de alguns volumes da “Coleção Folha – Tom Jobim”. Foi consultor da Ocupação Dona Ivone Lara (Itaú Cultural). Trabalhou como repórter de música em jornais como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, além de ter feito colaborações para Instituto Moreira Salles (IMS – Rádio Batuta), Apple Music, Bravo!, Rolling Stone, Clarín e Carta Capital.


O que lhe motivou a biografar o violonista Raphael Rabello? Quanto tempo esse trabalho demorou para ser concluído?

Ao todo, o livro levou seis anos para ser realizado. Em outubro de 2012, Raphael completaria 50 anos (ele morreu em abril de 1995). Na época, eu trabalhava na Folha de S. Paulo e propus de fazermos uma matéria falando dos 50 anos do Raphael. Na ocasião, estava para ser lançado um disco em homenagem a ele, “Um Abraço no Raphael Rabello”, com produção musical do violonista Rogério Caetano e produção executiva da Luciana Rabello. Além deste álbum, conversei com a Luciana e ela topou abrir publicamente pela primeira vez um pequeno baú que o Raphael havia deixado – com muitas fotografias, esboços de composições, cadernos de anotações das primeiras aulas dele (com o Meira, que foi professor também do Baden Powell). Eu já era fascinado pelo violão do Raphael. Mas quando fui “fazer a lição de casa” e pesquisar sobre ele para escrever aquela reportagem, percebi que havia pouquíssimo material sobre ele; eram informações dispersas na internet, com muitos erros e muitas especulações. A matéria foi publicada e notei que ainda havia muito assunto para tratar ali. Desde então, não parei mais. Em 2016, o projeto do livro foi contemplado no Rumos, edital do Itaú Cultural. Com isso, pude custear as inúmeras viagens para realizar pesquisas e entrevistas (são 132 personagens entrevistados para o livro). Agora, sem um pingo de cabotinismo, existe algo mais consolidado, mais substancial para quem quiser pesquisar sobre a trajetória do Raphael Rabello.


Quais foram os desafios para compor uma biografia como essa? É de se imaginar as milhares de dificuldades a superar na recuperação de documentos, na colheita de depoimentos, no levantamento de discografias e fichas técnicas (algumas dessas sem informações essenciais).

Os desafios foram muitos. Apesar da curta trajetória do Raphael – ele morreu com 32 anos -, ele lançou 19 discos em vida, mais 6 álbuns póstumos. Além disso, ele tocou em mais de 600 faixas de discos de outros nomes da música brasileira e internacional. Portanto, era uma avalanche de informações e de histórias. Por isso, pelo fato de ele ter tocado e se relacionado com muita gente, acabei entrevistando 132 pessoas, a fim de contar a história do Raphael da maneira mais plural e polifônica possível. Depois de coletar esse mundo de materiais, foi um tanto quanto complexo organizar “o meio-de-campo”, cruzar diferentes versões de um mesmo acontecimento, e contar essa história de forma saborosa para os leitores. Sempre com o seguinte norte: que o livro não soasse hermético para quem nunca ouviu falar de Raphael, mas que também não resultasse raso para quem já o conhecia bastante. Não é tarefa das mais fáceis chegar a esse equilíbrio.


No início da carreira, Raphael Rabello estava imerso em um dos gêneros musicais mais genuínos da música popular brasileira: o choro. É desse período, por exemplo, o grupo do qual Raphael participou com sua irmã Luciana chamado “Os Carioquinhas”. Quais foram as principais influências musicais de Rabello nesse período?

Raphael nasceu em uma família muito musical. Quando pequeno, ainda em Petrópolis (RJ), cidade onde ele nasceu, ele ouvia (por ser muito novo não chegou a participar de fato) seu avô dar aulas de piano, de violão e de práticas de coral para seus irmãos e irmãs. Além dessas aulas, ouvia-se muita música, por meio de discos e do rádio, na casa da família Rabello. Mais tarde, já na cidade do Rio, Raphael começou a tocar violão (o tradicional, de seis cordas, passando depois para o de sete) e a ouvir muito choro. Suas referências eram muitas, mas as principais eram o Meira (Jayme Florence, que foi professor também do Baden Powell) e o Dino 7 Cordas, ambos integrantes do lendário Regional do Canhoto, que acompanhou “meio mundo” de solistas e intérpretes do choro (entre eles, Pixinguinha e Jacob do Bandolim) e do samba (como Cartola, por exemplo). Foram referências definitivas na vida do Raphael.


Raphael adotou como solista, de maneira pouco usual, o violão de 7 cordas. Como se deu esse processo?

Por volta dos 13 anos, o Raphael descobriu a existência do violão de sete cordas e ficou fascinado com aquilo. A descoberta se deu por meio, basicamente, de dois discos importantíssimos: “Choros Imortais”, de Altamiro Carrilho e Regional do Canhoto, de 1964, e “Vibrações”, de Jacob do Bandolim e Conjunto Época de Ouro, de 1967. Até então, a principal referência no instrumento era a linguagem consolidada pelo Dino 7 Cordas. O que isso queria dizer? Que até então o violão de sete cordas era utilizado apenas como um instrumento de acompanhamento – fazendo as chamadas “baixarias” e os contrapontos improvisados, espécies de segunda melodia, preenchendo espaços deixados pela melodia principal ou pelo canto. Em 1982, o Raphael lança seu primeiro disco solo, batizado de “Rafael Sete Cordas”. Ali, pela primeira vez o sete cordas é utilizado como um instrumento solista, ou seja, solando a melodia principal. Aquilo, definitivamente, foi uma revolução, um capítulo muito novo na literatura do instrumento. Hoje a gente tem uma série de grandes violonistas que utilizam o sete cordas como solista: Yamandu Costa, Alessandro Penezzi, João Camarero, Gian Correa etc. O primeiro a fazer isso foi Raphael Rabello.


Vários nomes da música popular brasileira aparecem nessa biografia de Rabello, em especial alguns dos mestres da música instrumental. Entre outros, merecem destaque Dino 7 Cordas e Radamés Gnatalli, dois dos mestres de Raphael. Só pela biografia de Rabello, percebe-se que a vida de músicos como Dino mereceriam uma biografia à parte. Pensa em se dedicar a outra biografia de músicos desse quilate?

Sem a menor dúvida. A crítica especializada e amigos têm dito que um dos méritos do livro é o de contar não apenas a história do Raphael, mas também de inúmeros outros músicos importantíssimos na história da música brasileira, como Dino, Radamés, Jacob, Canhoto etc. Quando você faz um livro desses, tem o dever de apresentar o contexto da época e, claro, de mostrar também quem veio antes do personagem biografado. No caso do Raphael, para falar dele, a gente tem de falar de seus antecessores, como Garoto, Dilermando Reis, João Pernambuco, Satyro Bilhar, Quincas Laranjeiras, Dino, Meira, Tute, China, Villa-Lobos, Radamés... Ainda estou respirando, “baixando a poeira” após ficar seis anos me dedicado ao livro sobre o Raphael, mas já tenho há algum tempo o projeto de uma nova biografia. Em breve, espero poder contar para vocês sobre quem se trata. Mas posso adiantar que é sobre um dos personagens mais importantes e populares da história da música brasileira.


O violão de Raphael Rabello acompanhou importantes nomes da música brasileira, de Elizeth Cardoso a Ney Matogrosso. No final dos anos 70, seu violão era um dos mais requisitados nos estúdios. Você poderia mencionar algumas das principais canções que contam com o registro do violão de Raphael?

É uma tarefa “inglória”. Justamente pelo fato de o Raphael ter gravado com muita gente. Ficaríamos aqui até o ano que vem enumerando essas colaborações. Mas podemos destacar algumas de grande relevo: “Linha de Passe”, do João Bosco; “Meu Guri”, do Chico Buarque, os discos da Clara Nunes, do João Nogueira, de Dona Ivone Lara, Martinho da Vila, Francis Hime, Clementina de Jesus, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Paulinho da Viola, Paulo Moura, Zeca Pagodinho, Nara Leão, Elza Soares, Jamelão, Elizeth Cardoso. Era um tempo em que os artistas e as grandes gravadoras escalavam os principais músicos do país para tocar nos estúdios. Nesse contexto, o Raphael acabou atuando em mais de 600 faixas da música brasileira.


Várias pessoas reconhecem Raphael Rabello como um grande violonista. Nesse caso, o que significa ser grande? Raphael “revolucionou” a maneira de tocar violão?

Difícil definir o que significa ser grande. Mas sem dúvida nenhuma a gente pode afirmar que existe uma história do violão popular brasileiro antes do Raphael Rabello e outra depois dele. Raphael, como eu disse anteriormente, revolucionou o sete cordas ao alçá-lo ao patamar de instrumento solista. Só por isso ele já teria escrito seu nome na história. Além disso, ele também revolucionou no quesito acompanhamento. O que ele fez em termos de harmonia, de contrapontos, de levada, de suingue, de batida, de células rítmicas foi algo absolutamente novo na história do violão. E essa atuação não se limitou nem se limita ao Brasil. Não é exagero nenhum a gente dizer que o Raphael foi um dos maiores violonistas do mundo. Até o surgimento dele, ninguém tocava daquela maneira. E hoje, mais de 23 anos após a morte do Raphael, ainda não apareceu ninguém tocando daquele jeito; e acredito que dificilmente ira aparecer.


Entre outros violonistas do mundo, Raphael Rabello manteve relação estreita com Paco de Lucía. Raphael incorporou ao violão brasileiro caraterísticas da guitarra espanhola? É possível dizer que Paco de Lucía também foi influenciado pelo violão brasileiro de Rabello?

Difícil mensurar isso. Os guitarristas flamencos seguem muito à risca as tradições daquele gênero tão rico e tão especial na história desse violão ibérico. O que se pode afirmar com segurança é que o Paco considerava o Raphael um dos maiores violonistas do mundo. Eles tinham uma admiração mútua muito forte. Paco escreveu o texto da contracapa de um LP do Raphael e chegou a participar de um disco dele, tocando “Samba do Avião”, do Tom Jobim. Os dois tinham o desejo de fazer um álbum juntos. Infelizmente, pela partida precoce do Raphael, isso acabou não acontecendo.


Raphael é sempre lembrado como violonista solo ou de acompanhamento. Porém, ele também compôs algumas músicas, o que está bem registrado em sua biografia. Poderia destacar algumas?

Raphael dedicou sua carreira a ser um intérprete exímio. Isso, seguramente ele conseguiu. Mais para o fim de sua vida é que ele vinha se dedicando com mais frequência ao exercício da composição. Como morreu cedo, ele não teve tempo de deixar uma obra substancial como compositor. Ainda assim, de suas poucas composições, algumas se fazem presentes no repertório de muitos violonistas hoje em dia. Eu destacaria a valsa “Sete Cordas”, parceria dele com Paulo César Pinheiro”, “Camará” e “Salmo”, ambas também com Paulinho Pinheiro. Após a morte do Raphael, foi lançado o disco “Todas as Canções”, em 2002, com a Amelia Rabello, irmã do Raphael, interpretando composições dele. São canções feitas em parceria com Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc, dois dos maiores letristas do país. Vale a pena conhecer essa faceta de compositor do Raphael.





Na maioria de seus discos, Raphael grava composições de importantes violonistas brasileiros: Garoto, João Pernambuco, Dilermando Reis, Américo Jacomino (“Canhoto”), Canhoto da Paraíba. Rabello tinha predileção por algum desses violonistas? É possível notar alguma semelhança técnica entre ele e um desses?

Para fazer as revoluções que o Raphael fez no violão, era necessário conhecer quem veio antes dele. E isso ele fez como poucos; tinha um conhecimento profundo do repertório de seus antecessores. De todos estes, a gente pode dizer que uma referência salutar para o Raphael foi o genial Aníbal Augusto Sardinha, conhecido popularmente como Garoto, que também foi um revolucionário. Não à toa, eu e mais dois amigos (Rafael Veríssimo e Henrique Gomide) estamos fazendo um documentário sobre o Garoto já faz quatro anos. O filme deve ser finalizado e lançado no primeiro semestre de 2019.


Para aqueles que vão ouvir Raphael Rabello pela primeira vez, qual disco recomendaria?

Outra tarefa complicada... Mas acho que um bom “cartão de visitas” para evidenciar a dimensão de quem foi Raphael é o disco “Rafael Rabello”, de 1988. Está “tudo” ali. A gravação de “Lamentos do Morro” (de autoria do Garoto) é uma das mais conhecidas e marcantes de toda a carreira do Raphael. Se pudesse apontar outro álbum, eu escolheria “Dois Irmãos”, de 1992, do Raphael com o Paulo Moura. Aquilo ali é aula sobre solo, sobre acompanhamento, é aula de música, um encontro entre dois gigantes.


{n. 4 | agosto | 2018}

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