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Quem se responsabiliza pela formação leitora de crianças negras e pobres, nas escolas de periferia?

Atualizado: 9 de dez. de 2021


por Lucecleia Francisco da Silva*




Sabemos das dificuldades que a escola atual tem encontrado em formar leitores: os estudantes mergulhados no mundo virtual, professores que não sabem como fazer a mediação literária, a falta de investimento na formação inicial e continuada dos docentes, as condições precárias e a hiperexploração do trabalho, entre outras dificuldades.


Ao longo de nossa trajetória acadêmica e profissional, temos pesquisado sobre a formação leitora dos sujeitos e se essa formação colabora para a inserção social desses sujeitos. Destacamos, ainda, que a leitura é uma prática social, com isso queremos dizer que o acesso ao conhecimento e aos conteúdos relativos à leitura precisa ser assegurado aos sujeitos que estão dentro e fora do contexto escolar.


Uma das pesquisas que desenvolvemos (SILVA, 2017), nessa trajetória acadêmica e profissional, se traduz no presente texto; provocamos, ao perguntar quem se responsabiliza pela formação leitora de crianças negras e pobres, nas escolas de periferia. Provocamos porque queremos incitar respostas.


Entendemos que por si só a leitura e a literatura não tornarão a sociedade mais justa e igualitária; nem, como consequência delas, necessariamente teremos cidadãos mais conscientes ou “bonzinhos”; no entanto, nos apoiamos em Michèle Petit (2009b, p. 19), quando a pesquisadora afirma:


Compreendemos que por meio da leitura, mesmo esporádica, [os sujeitos] podem estar mais preparados para resistir aos processos de marginalização. Compreendemos que ela os ajuda a se construir, a imaginar outras possibilidades, a sonhar. A encontrar um sentido. A encontrar mobilidade no tabuleiro social. A encontrar a distância que dá sentido ao humor. E a pensar, nesses tempos em que o pensamento se faz raro.


Há que se contextualizar historicamente que o termo literatura esteve associado principalmente à aristocracia, aos mais abastados, aos poderosos, pelo menos até o século XVIII. O conceito se transforma a partir do século XIX, ou seja, é como se, na maior parte da história, as classes menos favorecidas não tivessem direito à cultura, aos bens imateriais (e materiais) mais valorosos dos seus tempos históricos. Esse movimento histórico não cessa seus efeitos deletérios assim que o direito à literatura passa a ser proclamado.


Assim, a dívida histórica que se tem em relação às crianças negras e pobres da periferia nos faz refletir sobre a responsabilização da formação leitora no meio dessa classe e grupo étnico. Crianças essas que são filhas da classe trabalhadora e que na maioria das vezes não têm acesso aos livros. Compreender como se dá a formação desses leitores (crianças negras e pobres), em escolas de periferia e em contextos adversos (famílias de não leitores, bibliotecas públicas ausentes ou precárias, instituições escolares sem a infraestrutura adequada, pouco tempo para atividades de lazer etc.) é o tema desse artigo. Para isso, precisamos compreender como os contextos histórico-sociais, econômicos, familiares, culturais se relacionam com a literatura na formação desses sujeitos leitores. Quem se responsabiliza pela formação desses leitores? E não havendo quem, o que abre caminho para essa formação?


Afirmamos que há crianças negras e pobres, sem herança cultural letrada, nas escolas de periferia que são leitoras porque a experiência concreta o prova – ainda quando em condição minoritária ou de exceção. Entendemos que os sujeitos leitores a que nos referimos eventualmente ainda não são os sujeitos leitores que desejamos que sejam – livres, responsáveis, críticos, capazes de construir o sentido de modo autônomo e de argumentar sua recepção, como diz Rouxel (2013) –, mas que, contrariando as expectativas mais imediatas, têm interesse na leitura e têm um certo acúmulo de experiências leitoras, reconhecidas pela igreja, pelos colegas, pela família e pela instituição escolar, que são instâncias culturais e sociais relevantes.


Para melhor compreensão sobre as essas inquietações, citamos Lajolo (2000, p. 105), que nos ajuda a entender que:


A literatura constitui modalidade privilegiada de leitura, em que a liberdade e o prazer são virtualmente ilimitados. Mas, se a leitura literária é uma modalidade de leitura, cumpre não esquecer que há outras, que desfrutam, inclusive, de maior trânsito social. Cumpre lembrar também que a competência nessas outras modalidades de leitura é anterior e condicionante da participação no que se poderia chamar de capital cultural de uma sociedade e, consequentemente, responsável pelo grau de cidadania de que desfruta o cidadão.


Desse modo, considerando o fato de que a escola é a principal responsável, em nossas sociedades, pela transmissão da capacidade de ler (e escrever), entendemos que tal instituição é também espaço privilegiado de transmissão dos conhecimentos acumulados pela humanidade – embora não estejamos de acordo com a redução da formação humana potencializada pela educação escolar à simples questão de desfrute da “cidadania”, presente na reflexão de Lajolo.


Apesar de vários fatores negativos, a escola, principalmente na periferia, ainda é um espaço social devotado às expectativas da comunidade na qual está inserida de acesso ao saber; continua sendo um espaço-tempo social que, muitas vezes de modo quase solitário, luta para garantir o acesso dos mais pobres aos “meios que permitem o progresso”. Ela desperta a confiança, na maioria das vezes, dos pais, da comunidade e da sociedade em geral, de que o que se faz na escola é importante, faz diferença, descortina outras possibilidades.


As mudanças sociais ocorrem de forma brutal e com intensa rapidez. Em meio a elas, a escola – como umas das guardiãs e transmissoras do saber relevante historicamente produzido pelos seres humanos – torna-se um lugar de “proteção” e de conhecimento. Além disso, deve dar conta ao mesmo tempo dos problemas que a atravessam e nos quais estão mergulhados os sujeitos sociais que dela fazem parte, com suas diferenças culturais, religiosas, sociais e econômicas.


Ao mesmo tempo em que se observa essa liquidez da sociedade e das relações humanas na atualidade, a própria sociedade, que passa por transformações espetaculares e abrange diversos modelos de família, elege uma de suas instituições para conservar o que sobrou dos antigos valores: a escola (GREGORIN FILHO, 2011, p. 23).


Gregorin Filho nos mostra a importância da escola nas grandes transformações das sociedades – nesse caso, as ocidentais – e que, apesar das mudanças ocorridas com o tempo, tais sociedades, ora com mais, ora com menos ênfase, preservam essa instituição secular.


Mais para além da escola, temos a compreensão de que o espaço ao redor dos alunos pode lhes propiciar acesso às práticas de leitura. E entendemos, como Pszczol (2008, p. 27), que:


(...) Em particular, o entorno cultural deve ser considerado, porque a maioria não tem, nesse entorno, acesso frequente e qualificado ao mundo escrito. Com isso, as bibliotecas (escolares, públicas, comunitárias) assumem a função essencial de possibilitar o acesso, a fixação e as práticas de leitura. As bibliotecas são extremamente importantes para complementar a formação do leitor, mas a escola ainda é, dentro do modelo adotado em nossa sociedade, o lócus dessa formação. Seria fundamental que esse papel fosse ocupado pelo lar, mas não é assim que funciona.


Quanto à escola, concordamos com Dalvi (2013), quando aponta que uma literatura com as características descritas por ela: viva, democrática e aberta, entre outras, não tem feito parte do currículo escolar, ou, pelo menos, das mediações realizadas pelos professores – e, por isso, a formação de sujeitos leitores tem sido realizada por outras instâncias sociais, como a igreja, os youtubers, os blockbusters etc. Esse “abandono” da escola em favor de outros mediadores culturais de leitura literária tem algumas causas já identificadas.


Petit (2013), por exemplo, nos ajuda a compreender a questão. A pesquisadora aponta que, ao passar do ensino fundamental para o ensino médio – o que ocorre teoricamente por volta dos quinze anos –, se exige dos alunos uma verdadeira “conversão mental”, para que se situem em relação aos textos com uma atitude distante, erudita, de deciframento do sentido, o que marca uma ruptura com suas leituras pessoais anteriores. A autora nos traz ainda a possibilidade de questionamento sobre a modalidade excessivamente formalista que tem prevalecido no ensino no que diz respeito à leitura.


A escola ainda falha na tentativa da formação de leitores ao promover a literatura associada ao cumprir tarefas (atribuir valoração, produção de resumos, preenchimento de fichas de controle etc.), desestimulando dessa forma os estudantes que são “bombardeados” cotidianamente pela sedução da indústria cultural.


A pesquisadora Michèle Petit também propõe uma crítica sobre “construir leitores”, como se fôssemos todo-poderosos. Como se tratasse de encontrar uma “fórmula de alquimista” para modelar não se sabe qual criatura ideal. Paradoxalmente, Petit (2013, p. 38) compara esse sonho de onipotência ao inverso de um sentimento de impotência que perpassa os discursos e que por trás desse título se ouve também um lamento, uma ladainha: “eles [os adolescentes] não leem mais”, “o que fazer para que leiam?”, “nos deem receitas para que enfim possamos dominar esses leitores potenciais e inatingíveis!”. A pesquisadora ainda assegura que não devemos nos surpreender com o fato de que, para muitos adolescentes, a leitura tem um caráter de obrigação: é preciso ler para agradar aos adultos; se muitos jovens resistem aos livros, talvez seja também porque querem que eles os “engulam” a todo custo.


Petit (2009b, p. 100) ainda é assertiva quando escreve sobre a não concordância com a falsa pretensão de muitos em acreditar que a leitura irá nos tornar melhores; ao contrário:


Não é que ler torne a pessoa virtuosa, não sejamos ingênuos: sabemos o quanto a história é rica em tiranos ou perversos letrados. Mas ler pode fazer com que a pessoa se torne um pouco mais rebelde e dar-lhe a ideia de que é possível sair do caminho que tinham traçado para ela, escolher sua própria estrada, sua própria maneira de dizer, ter direito a tomar decisões e participar de um futuro compartilhado, em vez de sempre se submeter aos outros.


É nessa perspectiva de garantia de direitos que devemos olhar o outro. Que o nosso próximo – e aqui eu escrevo sobre os alunos negros, de classes menos favorecidas, que estudam em escolas de periferia – possa ter as mesmas experiências de leituras que os alunos de classes mais favorecidas e que o fator econômico e social não seja impeditivo para que essas experiências aconteçam. Deve ser um compromisso de todas as sociedades democráticas, como convoca Candido (2004). Porém, como é sabido, tal projeto é irrealizável em um modelo societário em que os interesses do capital estão acima dos interesses humanos coletivos.


Não acreditamos na leitura e literatura como algum tipo de redenção ou um bem cultural salvacionista, e sim, numa contribuição – bastante fundamental – para a formação social e cultural dos seres humanos.


Em nossa pesquisa (SILVA, 2017), percebemos que nem tudo que os discentes leem é reconhecido por um padrão social estético corroborado pelo espaço social denominado escola. Independentes dessa aceitação, seguem adiante, tomando como mediadores outros “parceiros” que os acompanham num constante desafio para além da mediação pedagógica – talvez lançando mão de táticas, em face à ausência desta...


O que apreendemos a partir da nossa pesquisa foi que a escola, ao não assumir o seu lugar como mediadora na formação dos alunos, os “abandona” à mercê de diferentes mediações e, muitas vezes, outras instituições acabam ocupando esse lugar – instituições nem sempre afeitas ao compromisso com a formação humana integral ou com a emancipação de todos e de cada um (como acontece, por exemplo, quando a indústria cultural – com seu interesse na produção de mercadorias e no aumento do lucro – é que se torna a principal mediadora da leitura literária dos estudantes).


Precisamos refletir de modo significativo, em ações no espaço escolar, para que a formação de leitores se dê para além de meros chavões aprendidos e apreendidos através de pais, amigos e outros. É preciso pensar numa formação que leve os sujeitos a serem autônomos e capazes de se “despirem” de uma roupagem pré-fabricada e modelos pré-estabelecidos de leitores, (en)formados pelo gosto da indústria cultural ou pelo autoritarismo religioso (que decide quem pode ler, o que pode ler, o que vai entender do que leu).


 

Lucecleia Francisco da Silva é Licenciada em Pedagogia, Especialista em Ensino e Interdisciplinaridade – História e Literatura e Mestra em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Integra o grupo de pesquisa Literatura e Educação desde 2015. Pedagoga e Professora da Prefeitura Municipal da Serra, no Espírito Santo. E-mail: franciscolucy@gmail.com

 

NOTA


[1] As ideias centrais deste texto vinculam-se à dissertação de mestrado da autora, intitulada “Contra tudo e todos: a formação de leitores em contextos adversos, no município da Serra”, orientada pela Prof.ª Dr.ª Maria Amélia Dalvi e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, 2017.


REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004.


DALVI, Maria Amélia. Literatura na escola: propostas didático-metodológicas. In: DALVI, Maria Amélia; REZENDE, Neide Luzia de; JOVER-FALEIROS, Rita (Org.). Leitura de literatura na escola. São Paulo: Parábola, 2013. p. 67-97.


GREGORIN FILHO, José Nicolau. Literatura juvenil: adolescência, cultura e formação de leitores. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2011.


LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura de mundo. 6ª ed. São Paulo: Ática, 2000.


PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Trad. Celina Olga de Souza. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2009b.

______. Leituras: do espaço íntimo ao espaço público. São Paulo: Editora 34, 2013.


PSZCZOL, Eliane. O Papel do Proler em uma Política Nacional de Leitura. In: SILVA, Ezequiel Theodoro da (Org.). Leitura na escola. São Paulo: Global, 2008. p. 11-32.


ROUXEL, Annie. Aspectos metodológicos do ensino da literatura. In: DALVI, Maria Amélia; REZENDE, Neide Luzia de; JOVER-FALEIROS, Rita (Org.). Leitura de literatura na escola. São Paulo: Parábola, 2013. p. 17-33.


SILVA, Lucecléia Francisco da. Contra tudo e todos: a formação de leitores em contextos adversos, no município da Serra. Dissertação de mestrado – Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Educação, Ufes, Vitória, 2017.

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