No meio do caminho
That monster, custom, who all sense doth eat
Hamlet
minha cidade, encaro outra vez em delírio,
louco e velho príncipe, tua carranca; para ti arrasto
estes quarenta anos e tento encantar-te debalde.
balbucio em tuas tesourinhas um protesto errado
ou o nome mãe. (minha mãe bonita morreu triste
entre teus corredores de engolir estrelas e passarinhos).
minha cidade, envelheci e vejo tuas curvas rijas
que já não são de utopia, que são agora as curvas
de um boxer que duro canta uma ária de Turandot.
eu sangro enquanto choras asfalto, cal e carros
e te desejo monumental, tortamente Diadorim –
macho na chuva, fêmea nas manhãs: ninguém durma!
estou velho no sertão, na maloca, estou velho
na rosácea estéril da pequena burguesia, num circo
cheio de pústulas e dívidas, de nódulos e de relatórios.
pouca luz vem, minha cidade, de teus entardeceres,
e apalpo-me às dezenove horas de Brasília: reconheço
rugas; não tenho mais a mesma idade de David Beckham.
te aceito como um pederasta, te aceito como um comunista,
te aceito como Charles Chaplin, te aceito como uma super
bactéria, como um surto, um golpe de cotovelo: te aceito.
nas feiras de falsidades, vendi as quinquilharias de
meus sonhos, entreguei os vinténs dos meus sorrisos e
o dinheiro comeu aquele cavalo que me levava de ti através.
encaixei-me em teus eixos, caixeiro incurioso que sou;
de lasso papel que sou, aceito o verão que oprime,
anseio a seca que sempre derroga as águas do Paranoá.
mas ainda há algumas garças e trabalhos de Oscar, ainda
há a paixão de Lúcio no crucifixo; mas ainda há
um chope com Chico e Nicola à espera no Beirute.
então, não te mando embora pois sei mais de mim
sei amar mais, sei beijar melhor, sei melhor
reconhecer os companheiros que ao meu lado brigam.
entre hábitos, fantasmas e demônios, escrevo ainda
nesta vereda cerrada da vida, escrevo-te ainda, minha
cidade, para dar veias de verdade ao meu descontrole;
e te juro: não deixarei o monstro me devorar os sentidos.
Alexandre Pilati é poeta e professor de literatura brasileira na Universidade de Brasília (UnB). Entre outras obras, é autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009), e outros nem tanto assim (7Letras, 2015) e Poesia na sala de aula (Pontes, 2017).
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