José Saramago sofreu críticas acerbas ao lançar o polêmico (e excelente) romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Após o lançamento da obra, pelas perseguições sofridas, viu-se forçado a transferir-se de Portugal e passou a residir na ilha de Lanzarote, na Espanha.
Para a construção desse “evangelho”, Saramago (um ateu declarado) recorre, entre outras fontes, aos chamados “evangelhos apócrifos”, que contam histórias alternativas sobre a figura histórica de Jesus. O provocativo resultado da narrativa de Saramago incomodou a boa parte da cristandade alicerçada nas narrativas neotestamentárias canônicas, mas demonstra o alcance social e histórico da literatura.
Por outra via, Júbilo ou os tormentos do discurso religioso (Ed. Unesp, 2020), ensaio filosófico bastante pessoal de Bruno Latour, movimenta, tal qual o discurso ficcional de Saramago, as peças do tabuleiro do discurso religioso, principalmente do cristianismo.
O ensaio do Diretor Científico da Scince-Po (Paris) - autor de outros títulos publicados no Brasil, relacionado geralmente à área científica - pretende promover uma aproximação entre religião e ciência. De modo, contudo, nada usual. Pelo “microscópio” de Latour, há um microcosmo que expõe os tormentosos caminhos do discurso das religiões.
Ao questionar, por exemplo, a ancestralidade dos significados perdidos de inumeráveis passagens da Bíblia, escritos em outra época e outra cultura, e adaptados à contemporaneidade, observam-se diversas fraturas semânticas. Submeter a linguagem, essência de qualquer prática religiosa, a essas perscrutações filosóficas motivam, por parte de Latour, um desejo de rever todo o simbolismo que envolve o discurso religioso e seus efeitos em nossas vidas, sejamos o não devotados à religião.
Há muito de literário, ficcional e poético nos livros das religiões. Saramago, em mais de um livro, demonstrou isso. Latour, como cientista, pretende em seu ensaio, por ora, retirar a carga simbólica que atravessa a linguagem das religiões, como um retorno a uma origem do discurso religioso, no pensamento dicotômico entre “crença e descrença”, mas para a qual Latour diz não ser o cerne do problema.
As últimas linhas de Latour ajudam a compreender suas razões para um ensaio de caráter tão personalíssimo, como se Latour o utilizasse para um processo de catarse de seu próprio jeito de pensar a religião, a religiosidade e a torturada linguagem inaugurada pela religião, que pode criar um abismo entre o tempo presente e o mundo ao redor:
“Por que perdemos o uso do discurso religioso? Porque acreditamos que a religião é tortuosa, como se através dela devêssemos acessar mistérios distantes e obscuros ao longo de um caminho estreito e cheio de armadilhas. Ela semeia obstáculos que nos fazem cambalear, mas é porque o mecanismo de suas provações é outro: é difícil, de fato, encontrar as palavras certas, exatas, precisas, para tornar o discurso salutar, para falar do presente. Não inventei nada. Se em matéria de ciência natural ou social o pesquisador tem o dever de adicionar seu tijolo ao vasto edifício do saber, descobrir, inovar, produzir informação nova, em matéria de religião seu dever é de fidelidade: ele não deve inventar, mas renovar; não deve descobrir, mas recuperar; não deve inovar, mas retomar do zero o eterno refrão.” (p. 142)
RAFAEL VOIGT, editor da {voz da literatura}
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