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O ressentimento na literatura e no poder



“O ressentimento é uma constelação afetiva que serve aos conflitos característicos do homem contemporâneo, entre as exigências e as configurações imaginárias próprias do individualismo e os mecanismos de defesa do eu a serviço do narcisismo.” (p. 9) É assim que a psicanalista e jornalista Maria Rita Kehl abre seu livro Ressentimento, bibliografia fundamental sobre o tema desde 2004, quando sua primeira edição foi lançada.

Acaba de sair pela editora Boitempo a nova edição de Ressentimento, revista e ampliada, contendo um posfácio para os nossos tempos: “O ressentimento chegou ao poder?”

Além de toda a análise psicológica e sociológica que atravessa o conceito de ressentimento, merece realce o modo como, no capítulo 3, Maria Rita Kehl vale-se da literatura para estudar todos os contornos de personagens ressentidos. A “estética do ressentimenro” é o objeto de Kehl por meio da leitura analítica da peça Ricardo III (Shakespeare), Crime e castigo (Dostoiévski), São Bernardo (Graciliano Ramos) e As brasas (Sándor Márai).

Particularmente em relação a São Bernardo, de Graciliano Ramos, a autora propõe que:

“A derrota definitiva de Paulo Honório é infligida por Graciliano Ramos. Ele faz com que seu personagem saiba que a produção de riqueza em São Bernardo só se dera à custa de choro e miséria, crianças doentes, homens e mulheres tristes. A passagem de Madalena em sua vida obrigou-o a confrontar-se com a brutalidade de seu método, com a insanidade de seu modo de explorar e dominar os homens. Sem a mulher para remediar os males que ele espalhava em torno de si, já não era possível botar para funcionar a máquina de São Bernardo.” (p. 145)

E você, leitor(a), leu ou está lendo alguma obra que poderia facilmente figurar no corpus de análise de Maria Rita Kehl? É muito provável que sim.

“O ressentimento é um afeto de forte apelo dramático. A aposta principal do personagem ressentido, em uma ‘vingança imaginária e adiada’ contra o responsável pelo prejuízo de que se considera vítima, funciona bem como fio condutor que mantém a tensão dramática ao longo de uma narrativa”, acentua Kehl ainda no capítulo de crítica literária do livro.

No início deste texto mencionamos o posfácio que acompanha a nova edição da obra de Maria Rita Kehl, não poderíamos finalizar essa matéria sem destacar um texto para reflexão do leitor: “O espantoso, ao menos para dois terços dos brasileiros, é que a vez dele [Jair Bolsonaro] de fato chegou: só que não foi a de responder pela criminosa incitação à tortura*, e sim de presidir o país. O ressentimento venceu aquilo que, algum dia, foram nossas melhores esperanças.”

* Maria Rita Kehl se refere ao episódio ocorrido em 2014, quando Bolsonaro, em uma audiência pública em Brasília, promovida pela Comissão da Verdade, homenageou um dos agentes mais cruéis da repressão de Estado durante a ditadura: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.


RAFAEL VOIGT, editor da {voz da literatura}

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