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O livro como fetiche: Italo Moriconi

por Evando Nascimento*


(Texto publicado originalmente pelo autor no Facebook, em 13/02/2021, sob o título “O livro como fetiche - Italo Moriconi: acaso, endereçamento, destino”)


Aviso de recebimento.

Minha caixa de correios tem recebido preciosidades. Depois de um 2020 tumultuado, em que durante meses não chegava nada, nem as contas a pagar, agora o sistema postal voltou a funcionar, segundo penso, normalmente. Mas, claro, o Acaso continua imperando, pois recebi de volta dois livros enviados a um amigo chileno – tenho a impressão de que não compreenderam meus números no endereço, os quais conseguem ser mais garatujados do que minhas letras... E o psicanalista francês ousou dizer que uma carta (lettre) sempre chega a seu destino! – ou ele não trocava muita correspondência, ou não prestava atenção aos extravios, que abundam...

Ontem recebi essa linda prenda do ilustríssimo Italo Moriconi, um de nossos maiores críticos-poetas ou poetas-críticos, o leitor e a leitora decidem qual a ordem de precedência: Literatura, meu fetiche. O que dizer desse “companheiro escritor” (a expressão é dele) de décadas?

Foi um dos primeiros amigos que fiz quando, chegadíssimo da Bahia (como diria Mário de Andrade), iniciei o Mestrado na PUC-Rio, nos longínquos anos 1980. Foi paixão amical à primeira vista, ao menos de minha parte. Eu era um garoto de 22 anos quando comecei o curso, numa época em que se costumava fazer o Mestrado depois dos 28, 30 anos. Para completar, na PUC as turmas de Mestrado e Doutorado eram misturadas, não sei se continuam assim. Isso fez com que a maior parte de meus colegas (hoje amigos) tivesse em média dez anos a mais do que eu. Foi sobretudo a acolhida dessas pessoas que me fez eleger a selva selvagem carioca como lugar de pouso. Mas, como diz a linda canção de Gil, na voz do imenso e saudoso João Gilberto, “Eu vim da Bahia/ Mas algum dia eu volto pra lá”.

Italo já era um trintão, e se destacou de imediato nos cursos de Silviano Santiago – seu grande mestre –, entre outros. Na dedicatória desse belo Literatura, meu fetiche, ele faz uma referência ao Léu, seu primeiro livro de poemas. Lembro que, numa de nossas conversas, ele me disse que estava com uma coletânea de poesia quase pronta, mas tinha dúvidas sobre se devia publicar. Me dispus a ler e opinar. Amei o Léu, que tinha uma pegada pop, típica da geração marginal, a que Italo pertenceu (foi, inclusive, amigo de Ana Cristina Cesar, sobre quem escreveu uma ótima biografia geracional e dedicou o poema aqui reproduzido), mas também tinha a marca da erudição que o distinguia dos “marginais” (todos de classe média, sem relação com os/as valentes escritores/as das periferias de hoje).

Lembro que ele foi até meu apartamento no Baixo Gávea para lhe passar minhas impressões sobre o Léu. A única observação de que me recordo é que eu preferia os poemas mais curtos, embora gostasse também dos longos. Não fui decerto o único leitor do manuscrito – ele mencionou depois nosso querido amigo Paulo Henriques Britto –, mas fui muito enfático e acho que o ajudei a tomar a melhor decisão: publicar o livro sem mais demora. Dito & feito, e assim me vi, guri, na companhia de quatro ilustres “senhores” também dedicados. Se minha memória não falha – e ela costuma falhar muito –, o lançamento foi na recém-extinta Timbre.

De lá para cá foram muitos encontros, muitas conversas, muitas trocas afetivas, muitas histórias compartilhadas, alegres ou tristes, como a vida. Entre 2004 e 2009, morei na rua Belfort Roxo perto dele, que está instalado há décadas na rue Duvivier, em Copacabana, bem próximo de onde o poeta Gullar residia. Escrevi propositalmente “rue” porque lá funciona a Aliança Francesa, onde estudei e tive uma professora excepcional, a nativa Geneviève (não recordo o sobrenome, hélas), que me fez literalmente destravar a língua. Cheguei a Paris nos anos 1990, falando francês pelos cotovelos, em grande parte por causa dela, uma pessoa inteligente e muitíssimo divertida.

Sou, portanto, leitor-admirador de Italo há muitos anos. Gosto demais de seus textos críticos, que têm em geral um caráter de intervenção, como ressaltaram as organizadoras do atual volume, Paloma Vidal e Ieda Magri, numa live-lançamento organizada pelo bravíssimo Schneider Carpegianni, do Suplemento Pernambuco e da editora cult Cepe.

Tudo isso então para dizer que o livro está belíssimo, com excelente seleção de textos – conheci muitos deles na publicação original. Recomendo expressamente para ser lido por quem quer que se interesse pelo “fetiche literário”, mas também e sobretudo por alunos e professores da graduação e da pós em Letras, Filosofia, Sociologia & afins. Um dos melhores acontecimentos literários desses tempos pandêmicos.

Sempre lamentei que Italo ainda não tivesse uma coletânea de ensaios expressiva de tudo o que fez. Fiquei muito feliz quando suas duas antologias, os melhores Contos e os melhores Poemas do século XX, lhe deram projeção nacional. O mundo acadêmico é endógeno e quase anônimo extramuros. Muitas vezes pesquisadores de alto nível não conseguem atingir um público maior, mas isso faz parte da vida universitária, não há nada a lamentar. Todavia, é muito bom ver um colega obter grande visibilidade no que faz, como faz.

Felicito as criteriosas organizadoras, duas brilhantes ex-alunas e agora escritoras-professoras. E que venham outras coletâneas, nos tempos por vir – se houver tempos e porvir para a humanidade pós-pandemia...

Cool memories.

P.S.1: A epígrafe do volume foi retirada de Barthes, nossa paixão comum: “O texto é um objeto fetiche e esse fetiche me deseja” (O Prazer do Texto). Para mim, o livro materialmente falando, e não apenas o texto e a literatura, é o verdadeiro fetiche. Como perceber integralmente a diagramação e todos os componentes lítero-visuais de um volume, além da textura do papel, se não for impresso? Leio muitas publicações digitais, mas esse feitiço palpável não abandonarei jamais. Literatura, meu fetiche me convenceu em definitivo sobre isso.

P.S.2: quem sabe Italo não reedita Léu e Quase Sertão, seu segundo livro de poemas, num só volume? Afinal, são dois testemunhos poéticos dos 70, 80 & 90. Aguardemos.

 

* EVANDO NASCIMENTO, escritor, ensaísta, artista visual e professor universitário. Entre outros livros, escreveu a ficção A desordem das inscrições (contracantos) (7Letras, 2019) e o ensaio Derrida e a literatura (É Realizações, 2015, 3ed.).

 

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