Mais alguns dias e virá a lume o e-book Natal brasileiro em prosa: 1854-1932, antologia que reúne 20 autores, entre eles: Marques de Carvalho. A seguir, publicamos na íntegra o capítulo com seu "Conto do Natal".
1897
João Marques de Carvalho (PA, 1866-1910) escreveu seu espirituoso “Conto do Natal” para o jornal A província do Pará em 1897. Dez anos depois, o texto aparecerá também entre seus Contos do Norte (1907). O paraense Marques de Carvalho é geralmente associado à corrente naturalista de sua época, em razão do romance Hortênsia (1888).
Conto do Natal
O velho padre Jacinto estava já abroquelado na dupla coiraça da virtude e da idade. Não havia cara bonita de mulher nova que lhe atraísse um olhar mais demorado, assim como não existia pecado, venial ou mortal, cuja denúncia pudesse conturbá-lo. Tinha o sacerdote ouvidos castos para quantos delitos lhe segredavam as beatas, através da lâmina de folha esburacada do confessionário.
E era sempre com a mais tranquila meiguice, toda paternal, que monotonamente prescrevia um Padre-Nosso e uma Ave-Maria como penitência às mais reincidentes pecadoras.
Trinta anos de pastoreio de ovelhas espirituais haviam-lhe dado, com a calma imperturbável, o anestésico da sensualidade.
Dentre as suas mais assíduas confessadas distinguia-se, pelo ameno rosto e fervorosa devoção, uma jovem mulatinha, filha dum fazendeiro da comarca de Chaves. Era um primor, a Maricota, requestada por muitas léguas em torno, na cálida terra marajoara, onde o amor bebe roborantes filtros aperitivos, na doce emanação das gordas pastagens restolhadas.
Ninguém mais atenta do que ela aos deveres do culto católico e ao cumprimento de suas obrigações domésticas: «rapariga da ponta», consagrava-a a opinião da comarca, pelo órgão competentíssimo do conspícuo juiz de direito.
Quando chegou dezembro, Maricota combinara com o vaqueiro Antonio, seu namorado de infância, que a fosse pedir em casamento no dia de Natal. Tinha fé na data, que havia de angariar-lhe maior messe de venturas; e ainda em obediência à inclinação religiosa, abalou campos afora, até à residência do clérigo, a quem confiou a tarefa de formular perante seus progenitores o pedido sacramental em nome do rapaz.
Ao trêmulo pastor d'almas agradou aquela incumbência intencional, como lisonjeira homenagem à sua dupla autoridade de confessor e velho amigo da família.
Que fosse com Deus e ficasse certa de que, no dia de Natal, pela tarde, lá estaria a representar o maganão.
***
À porta da casa principal da fazenda, à beira-rio, em Marajó. Tarde assoalhada pomposamente, na magnificência vencedora do grande astro a descambar pelo espaço translúcido. Chovera uma hora antes e o céu, azul e brunido, estava ermo de nuvens. Dos campos infinitos, muito verdes ao perto, gradativamente azulados à medida que a vista buscava o horizonte, subiam olores adocicados, o bom cheiro dos fortes pastos ensopados d'água. E do lado dos estábulos, era um retintim jovial de cavaquinhos e violas, o ardente sapateio das danças campesinas.
Toda a família da Maricota, sentada no copiar em derredor da secular mangueira frondosa da esquerda, palestrava contente, ouvindo as boas chalaças inofensivas do sacerdote.
Os dois noivos — noivos desde meia hora antes — conversavam a alguns passos de distância do grupo principal. Para o vaqueiro, esse instante era o mais feliz da vida. Pulava-lhe o coração desencontrado no peito arfante, rebrilhavam-lhe as pupilas, que refletiam a imagem, sempre meiga e adorada, da sua querida Maricota. Parecia-lhe que a voz da rapariga, nesse primeiro colóquio já realizado com o assenso da família, e por isso dotado de um sabor novo, possuía inflexões desconhecidas, entonações estranhas, um aveludado espesso como o refresco do açaí.
À moça, entretanto, como que um pensamento fixo a preocupava. Duas vezes já, deixara sem resposta, ou respondera demoradamente, a uma apaixonada interrogação do noivo, ternamente segredada em trêmulo balbucio de emoção.
Notou-o o velho padre, ao observá-los de longe.
Erguendo a voz, perguntou-lhe num sorriso:
— Que tens, filha? Em que pensas?
E a Maricota, levantando-se de ao pé do noivo, acercou-se da família e:
— Penso, explicou, que por ser hoje dia de Natal, o sr. padre bem poderia obter para mim a graça de ficar sempre «virgem antes do parto, no parto e depois do parto»...
E voltando-se para o vaqueiro, a sorrir — inocente ou maliciosa? ninguém poderia reconhecê-lo —, no meio da estupefacção geral, acrescentou:
— Não deves zangar-te com isso; Jesus foi filho de Deus, e São José não deu o cavaco!
João Marques de Carvalho.
- Natal brasileiro em prosa: 1854-1932 [e-book]
- Organização, notas e apresentação: Rafael Voigt Leandro.
- Edições Voz da Literatura, 2020.
- ISBN: 978-65-00-14098-9.
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