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Manuel Bandeira, tradutor de Emily Dickinson

por Rafael Voigt*



A faceta de tradutor de Manuel Bandeira merece ser conhecida. É mais um desdobramento de sua criação literária. Uma boa amostra desse trabalho de Bandeira encontra-se no volume Poemas traduzidos (Ed. Global, 2016), publicado originalmente em 1945. Entre outros poetas, aparecem na coletânea: Goethe, Baudelaire, Jorge Luis Borges, Antonio Machado, Rilke, Elizabeth Bishop, Kahlil Gibran, García Lorca, Juana Inés de la Cruz, Emily Dickinson.


O livro conta, ainda, com apresentação do professor, poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, que nos ajuda a compreender boa parte do perfil do tradutor Manuel Bandeira. É particularmente interessante notar como Bandeira evolui na tradução de poetas de língua inglesa, lançando mão da recriação para alcançar o mesmo efeito sonoro do original, tal como Paulo Henriques Britto exemplifica em relação a poema de Elizabeth Bishop (“Acalanto”) e no conjunto de poemas de Emily Dickinson.


Em Poemas traduzidos, constam cinco poemas de Dickinson. É uma pena que a edição não seja bilíngue. Para quem gosta de traçar comparações e perceber escolhas realizadas pelo tradutor, faz falta. De qualquer forma, isso não diminui o valor do trabalho.


Ao que se sabe, Manuel Bandeira foi um dos primeiros tradutores de Dickinson no Brasil. A partir da informação de Paulo Henriques Britto sobre a primeira tradução dos versos de Emily Dickinson realizada por Manuel Bandeira, é de que tomamos conhecimento de que o autor de Libertinagem verteu o poema “Beleza e verdade”, de Dickinson, e o publicou no jornal Paratodos em 1928. Algo curioso é que Emily não dava títulos a seus poemas, mas Bandeira optou em dar nome ao poema e seguir o uso mais corrente entre os leitores brasileiros. O poeta-tradutor retocou esse poema de Dickinson até a edição de 1956 de Poemas traduzidos.


Para que o leitor possa realizar ligeira comparação entre o original da poeta estadunidense e a recriação de Bandeira, reproduzimos ambos:


I died for Beauty — but was scarce Adjusted in the Tomb When One who died for Truth, was lain In an adjoining room —

He questioned softly “Why I failed”? “For Beauty”, I replied — “And I — for Truth — Themself are One — We Brethren, are”, He said —

And so, as Kinsmen, met a Night — We talked between the Rooms — Until the Moss had reached our lips — And covered up — our names —


Beleza e verdade

Morri pela beleza, mas apenas estava

Acomodada em meu túmulo,

Alguém que morrera pela verdade

Era depositado no carneiro contíguo


Perguntou-me baixinho o que me matara:

- A beleza, respondi.

- A mim, a verdade – é a mesma coisa,

Somos irmãos.


E assim, como parentes que uma noite se encontram,

Conversamos de jazigo a jazigo,

Até que o musgo alcançou os nossos lábios

E cobriu os nossos nomes.


Não obstante algumas modificações estruturais nos versos, é forçoso observar que Bandeira conserva a coloquialidade de Emily ao tratar do “diálogo entre mortos” para pensar dois valores caros à humanidade: a “beleza” e a “verdade”. É nessa chave filosófica, entremeada de uma conversa prosaica, que o poema adensa o choque dialético do belo e do verdadeiro. Bandeira, tão dado às coloquialidades, parece dar o braço a Emily e conduzi-la para o espaço poético brasileiro. Há algo de brasilidade nessa tradução. Por mais que sabidamente Manuel Bandeira não fosse versado em língua inglesa, é certo afirmar que ele captou o espírito do poema e procurou fazê-lo funcionar para o leitor de nosso país, aclimatando-o à nossa realidade nacional.


Em Poemas traduzidos, os outros quatro poemas de Emily Dickinson são intitulados por Bandeira como “À porta de Deus”, “Nunca vi um campo de urzes”, “Cemitério” e “Minha vida acabou duas vezes”. É uma boa pedida ler e analisar essas outras amostras nesse encontro da espirituosidade de Bandeira e Emily, na qual ele pretende “abrasileirar” a tradução, mas mantendo fidelidade ao original.

 

RAFAEL VOIGT é editor da revista Voz da Literatura e doutor em literatura pela UnB.

 

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