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Júlia Lopes de Almeida

A revista {voz da literatura} vem preparando para dezembro uma surpresa para seus

leitores. Parte dessa surpresa passa pelo trabalho da escritora Júlia Lopes de Almeida (RJ, 1862-1934), prolífica escritora e jornalista.



Reproduzimos abaixo um singelo conto de sua autoria, “Reabilitação: mais vale tarde do que nunca”, publicado em 21 de agosto de 1886 em “A Semana” , premiado em 3o lugar em concurso aberto por esta revista. E também saiu em 8 de dezembro de 1888, no jornal literário feminista “A família”, dirigido por Josefina Álvares de Azevedo. Para a transcrição do texto, consultamos as edições desses periódicos disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira.



 

A REABILITAÇÃO: MAIS VALE TARDE DO QUE NUNCA


Pelas penedias escabrosas da vila, donde saíra havia vinte anos, lá ia o velho Simão montado na mula pachorrenta e dócil, assídua cianita desse caminho traçado na montanha.

Alugara-a em baixo, no sopé da serra, a um caboclo de voz arrastada e máscula, grande cabeleira negra, alto e musculoso, barba à nazarena, curta e rala, morbidez no olhar e faca à cinta.

O caboclo não o enganara: o animal era bom; e pisava com firmeza, afitava as orelhas ao menor rumor, desviava-se das ribanceiras, que desciam da estrada barrentas, seca e batida pelo sol, à grota sombria, misteriosa, rumorejante d’água a correr, soluçando entre pedras limosas e troncos cobertos de musgo. Os seixos, deslocados pelas patas da mula, rolavam pela ladeira íngreme, uns após outros: o velho Simão, com grande chapéu do Chile a sombrear-lhe o rosto vermelho de cansaço, a bolsa a tiracolo, o casaco de brim manchado de suor, os olhos cerrados à muita claridade do dia azul é quente, o velho Simão não parava um momento, e no seu cérebro as ideias, sucediam-se, perdendo-se umas após outras, como os seixos do caminho.

Eram quatro horas quando viu ao longe a casaria da vila.

Chegara a um ponto de paragem, onde havia sombra e um regato, que serpeava alegremente num tapete de relva; deu rédeas ao animal, que, curvando o pescoço, bebeu sofregamente da água em que o arvoredo estendia a mancha negra das frondes.

O velho tirou o chapéu, limpou a fronte umedecida, aspirou aquele suave frescor, que vinha perfumá-lo da floresta, e estenderá a vista para além, para a vila, que se elevava risonha, florida, como um presepe armado pela mais crente devota.

Saíra dali havia vinte anos, por uma noite escura e triste como uma enxovia, perseguido e acabrunhado. Nem uma estrela, nem um canto, a não ser o das corujas pousadas nos galhos dessas mesmas árvores, que estavam agora cheias de aves gorjeadoras e felizes!

Lembrava-se tão bem de tudo!

A mulher amaldiçoava a sua sorte, apertando ao peito o filho recém-nascido, que chorava por não encontrar o leite, que o desespero secará; a filha mais velha tinha febre, ia gelada, coitadinha, e a tossir muito!...

Ele suplicava de mãos postas que tivesse paciência; ao que a mulher respondia com uma ironia e a filha com um soluço. Que noite interminável fora aquela!

Nem um amigo! Fugira como um assassino, ele que estremecia de horror quando qualquer criança atravessava com um alfinete o delicado corpo de uma borboleta!

-Ah! que se eu não tivesse mulher e filhos... matava-me! dizia ele, nessa noite trágica, com as mãos crispadas.

Qual tinha sido o seu crime?

Falira; dera grande prejuízo à gente da Terra; ameaçaram-no com a prisão e anonimamente com a morte.

O último, o único recurso que se lhe apresentou foi esse, tão ignominioso - a fuga; fugiu.

No outro dia, na vila, choveriam sobre o seu nome todas as acusações, todos os epítetos infamantes. Havia de ser assim; e afinal, eles teriam razão; e isto é que lhe doía muito - o eles terem razão!

Ah! que se não fossem a mulher e os filhos… repetia ele a todo o instante.

Eram passados vinte anos; no entanto, aquela noite sentia-a ainda a obumbrar-lhe o espírito.

É que lhe tinha deixado na alma toda a sua escuridão e o tétrico piar das corujas!

Durante esse intervalo trabalhou muito o pobre Simão; economizou moeda a moeda; fez-se a avarento, o infeliz!

Os filhos não tinham aspirações, a mulher acabara resignando-se, ele não; instigava-o um pensamento único, redobrava de atividade ä proporção que diminuía de forças.

Um dia entrou radiante de alegria em casa. A mulher parou de coser, a filha de engomar, interrogando o velho ansiosamente ñ. Ele chorava e ria, o poltrão! Agruparam-se atônitos ao redor dele, que aclarou o mistério da sua alegria, dizendo que já tinha com que pagar a seus credores!

No outro dia, ao despontar da aurora, pôs-se a caminho por aquelas montanhas: descera-as a rarear nas trevas, estremecendo de medo no menor rumor da folhagem, com a alma pequena, o passo vacilante, o corpo enfraquecido; e tinha então menos de vinte anos! Agora palpitava-lhe jubiloso o coração ao subir aquela mesma serra, à Clara luz do sol brilhante e puro, a santa, a divina luz!

Sentia uma força, um vigor estranho; sorria, admirava a natureza, via coisas que boa vira havia vinte anos, vinte anos em que trabalhou dia a dia com os olhos fitos no mesmo ponto - a sua reabilitação.

De porta em porta bateu o velho, pagando com lealdade as suas dívidas. Ninguém o esperava já, por isso admiravam-se, manifestando-lhe abertamente o seu espanto, ao que ele respondia satisfeito: mais vale tarde do que nunca.

Finda essa missão, voltou o honrado homem ao seu lar. Pelo caminho ia gozando de um sentimento novo, suave, festivo, como o que experimentaria um galé a quem tivessem dado a liberdade.

***

Cantavam as aves, punha-se o sol, dourando a ramaria das matas, e ele ia, o velho, com a fronte levantada, o sorriso nos lábios: sabia, oh! se o sabia! que havia de encontrar em casa a pobreza, mas a sua consciência sorria-lhe, mas voltava honrado, mas podia agora morrer abençoando os filhos, que haviam de respeitar-lhe a memória, e abençoá-la também.

Ah! a honra, a honra é uma coisa santa!

***

Quando o velho Simão chegou a casa esperavam-no alegremente todos. Nem fome, nem miséria; ele nada viu senão os braços das filhas, que se lhe estendiam saudosos e o sorriso da esposa, terno, acariciador.

Então, por uma transposição súbita, lembrou-se do que pensara naquela terrível noite: Se não tivesse mulher e filhos...matava-me! e afastando essa recordação amarga, fitou feliz o olhar naqueles rostos amados, assim, como o Maura deve olhar para o farol que o salvou do naufrágio, guiando-o como uma boa estrela...


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