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ENTREVISTA | Goethe: poesia e verdade

Atualizado: 10 de ago. de 2018

Entrevista com o tradutor Maurício Mendonça Cardozo


A {voz da literatura} entrevista MAURÍCIO MENDONÇA CARDOZO, tradutor, escritor e professor da Universidade Federal do Paraná na área de Tradução. A conversa aborda, principalmente, o processo de tradução do livro De minha vida: poesia e verdade, a autobiografia de Johann Wolfgang von Goethe , lançada em 2017 pela editora Unesp.










Sua última obra traduzida foi De minha vida: poesia e verdade, de Goethe, lançada pela Editora Unesp em 2017. Quais são os desafios de traduzir quase mil páginas dessa “autobiografia” de um dos maiores escritores alemães de todos os tempos?

Como talvez não seja difícil de imaginar, a tradução de uma narrativa extensa coloca o tradutor diante do desafio do que poderíamos chamar, na falta de termo melhor, de consistência – desafio que também se impõe na tradução de textos mais curtos, mas que se evidencia de modo mais extensivo em obras de maior fôlego. Com a ideia de consistência, refiro-me aqui à toda sorte de questões de ordem estilística, à amarração dos inumeráveis fios narrativos, à precisão na retomada de informações, discussões e pontos de vista apresentados anteriormente (de importância especial num texto autobiográfico como o de Goethe) e assim por diante. Mas além desse grande desafio, que se traduz no trabalho de conferir alguma consistência à voz de um Goethe autobiográfico ao longo de quase mil páginas, há ainda um outro desafio, talvez menos evidente, que se impõe ao tradutor no curso do tempo em que ele vive o enfrentamento dessa empreitada tradutória: refiro-me ao desafio de procurar ser um mesmo tradutor de Goethe ao longo dos meses e anos de vida empenhados na tradução de uma obra como esta; ou, para dizer melhor, refiro-me ao desafio de enfrentar o fato de que ninguém se mantém exatamente o mesmo ao longo de uma relação tradutória como esta. Trata-se de um desafio nada desprezível, em especial se levarmos em consideração o quanto nos transformamos ao viver uma relação tão íntima e intensa por tanto tempo.

Do ponto de vista crítico, pensando aqui numa espécie de circunscrição do espaço de ação do tradutor, impõe-se também o desafio de entender o que essa obra e seu autor representam, hoje, para além de seu valor histórico. Em outras palavras, trata-se de pensar, como tradutor, se a obra a ser traduzida ainda tem algo a dizer ao homem contemporâneo em geral, se ela ainda tem força, como obra, para se constituir como uma forma de vida no mundo contemporâneo; ou se o objeto em tradução reduz-se a seu valor canonizado, seja como monumento, seja como objeto de interesse apenas de um círculo mais restrito de especialistas.

Goethe é um daqueles autores, cuja obra padece do grande descompasso entre a amplitude de seu estatuto canônico e sua presença efetiva como forma de vida no universo literário contemporâneo. Como tradutor, entendo que é preciso apostar em algum modo particular de entender essa circunstância peculiar de sua recepção. Teria o tempo provado a superestimação do valor da obra em sua época? Teria a força da obra e de seu autor se desagastado com o passar do tempo? Ou será que o modo como hoje nos relacionamos com a obra e seu autor é que seria merecedor de certo grau de redimensionamento e atualização? Em minha tradução, assumindo que a obra de Goethe ainda tem muito a nos dizer, resolvi apostar nessa compreensão de que é o modo como nos relacionamos com sua obra que carece de reconfiguração; e se a tradução é, necessariamente, um modo de relação com o outro, ela se apresenta como uma ocasião privilegiada para exercer alguma forma de impacto sobre a relação dos leitores com a obra traduzida.


Em que período da vida Goethe escreveu De minha vida: poesia e verdade?

Apesar de se concentrar nas primeiras décadas de sua vida, desde seu nascimento, em 1749, até a partida para Weimar, em 1775, o autor começa a trabalhar em sua autobiografia somente entre 1808 e 1809. As três primeiras partes foram publicadas até 1814. A quarta e última foi publicada postumamente, apenas em 1833. Assim, se levarmos em conta que, ao lermos a voz viva e vigorosa desse jovem em formação, lemos o resultado do esforço intelectual e criativo de um homem sexagenário do início do século XIX – já então monumentalizado por seus contemporâneos, talvez na mesma medida de sua extemporaneidade –, teremos uma boa mostra da envergadura do autor por trás dessa autobiografia.


De minha vida: poesia e verdade parece revelar que traduzir não é apenas um ofício de verter uma língua em outra. O tradutor figura como um leitor e um intérprete privilegiado nesse processo por vezes tão exaustivo?

Certamente. Diria, ainda, que o privilégio dessa figuração consiste no sentido mais forte desse termo: assim como o texto traduzido vai sendo construído aos poucos, como uma espécie de rasto textual – para evitar aqui a redução dessa experiência tão viva à simples ideia de produto – ou, simplesmente, como aquilo que resta da relação do tradutor com a obra e com seu autor – por certo uma relação de leitura e interpretação, mas, antes de tudo, uma relação de convivência –, também o próprio tradutor, aos poucos, vai ganhando contornos, forma, figura, enfim, vai se construindo e se tornando, no espaço e no tempo dessa relação, o tradutor dessa obra. Traduzir uma obra como esta dá-nos uma boa medida do quanto traduzir algo é sempre, também, uma forma de traduzir-se.


De que forma o tradutor deve se preparar para a tarefa de ir fundo na linguagem de uma época já tão recuada, de um homem como Goethe, que viveu entre o século 18 e 19?

Do ponto de vista mais geral, diria que, mais do que se preparar para cumprir, executar ou até mesmo renunciar às tarefas da tradução, é importante que o tradutor esteja preparado para experimentar intensamente os limites e as possibilidades da experiência de traduzir. E como traduzir nunca envolve apenas certezas, isso significa estar aberto, também, a tudo o que nessa experiência se impõe sob a forma da surpresa. O conhecimento das convenções e das diferentes formas de expressão da língua alemã em cada época é um pressuposto importante, de ordem técnica. Mas, no caso da tradução, como se sabe, esse tipo de conhecimento é mais um instrumento do que um fim em si, ou seja, os resultados de seu uso também dependem muito do modo como nos servimos desse instrumento. Na tradução de Poesia e Verdade, o importante para mim foi tentar flagrar um Goethe que, mesmo ao valer-se amplamente das convenções e dos valores de sua época, sabia fazê-lo de modo muito particular, sendo capaz de singularizar o que, até então, manifestava-se como algo meramente convencional.


{“Goethe em Campagna”, de Johann Heinrich Wilhelm Tischbein (1787)}

Quais obras de apoio servem para o tradutor nesse processo? A edição revela um trabalho cuidadoso de inserção de notas para facilitar a leitura de vários trechos da obra.

Como pude contar com bastante tempo para fazer esse trabalho, recorri a toda forma de apoio bibliográfico que pude encontrar, em bibliotecas e na internet, no Brasil e na Alemanha, com destaque para as diferentes edições da obra, para suas edições críticas e anotadas, bem como para as várias traduções anteriores da obra para o português, para o inglês e para o francês.


De minha vida ajuda a explicar o processo de criação literária de Goethe, em obras como Os sofrimentos de Jovem Werther ou Fausto?

Apesar do longo relato sobre sua relação com Gretchen – seu primeiro amor, segundo a narrativa de Poesia e Verdade – e algumas menções pontuais, o autor não se detém mais alongadamente sobre nenhuma das versões de seu Fausto – segundo documenta a crítica, Goethe pretendia incluir, na quarta parte, uma exposição mais ampla sobre o projeto fáustico, mas acabou desistindo da ideia. Quanto ao Werther a situação é diferente: além de fazer todo um retrato do contexto de época em que se insere a obra, o próprio modo como Goethe desenha sua relação com a recepção de sua famosa obra epistolar oferece-nos um bom indício do modo como o autor parecia querer que entendêssemos as relações entre sua obra e sua vida.

Mas além das menções mais ou menos pontuais a várias de suas obras, destacaria ainda a riquíssima dramatização dos dilemas e anseios que permeiam a relação de um jovem com a criação literária (Dichtung). Guardadas as devidas proporções (e os descontos por vezes necessários), essa narrativa de como a literatura vai ganhando aos poucos um lugar na vida do biografado parece-me extremamente contemporânea, seja porque alimenta um imaginário que nos é ainda muito presente e que define grandemente a imagem do que é (ou não é mais) ser um poeta, um escritor hoje em dia, seja porque algumas das questões de fundo dramatizadas na autobiografia, ainda que encontrem hoje formas obviamente muito distintas de manifestação, continuam se impondo com a mesma espessura para aqueles que se aventuram pela arte da criação literária.

Seja como for, a questão do valor de Poesia e Verdade como subsídio para a "explicação" de outras de suas obras ou para a elucidação de alguns episódios de sua vida é um tema amplamente discutido pela crítica desde a época de suas primeiras publicações; e a despeito do que a pesquisa pôde documentar dos tantos encadeamentos narrativos que nos informam sobre a vida e as percepções de vida, as aventuras e as desventuras desse Goethe, não esqueçamos que se trata, ainda assim, de uma narrativa autobiográfica e que, como tal, a obra empenha-se explicitamente na construção de uma figura bem particular do biografado.


Quais as passagens de De minha vida: poesia e verdade você escolheria como sendo os seus preferidos? Por quê?

São muitas, mas tendo a gostar mais das passagens marcadamente irônicas, auto-irônicas e autocríticas, que fazem um contraponto importante na construção da imagem do biografado. Há também passagens que, mesmo não sendo espetaculares, acabaram me divertindo ou me encantando ao traduzir: pequenos detalhes, como os nomes que o professor de piano atribui a cada um dos dedos (no quarto livro); algumas frases de efeito, que abrem ou fecham digressões importantes; alguns poemetos jocosos; alguns parágrafos que, em obra tão extensa, podem passar desapercebidos, mas são preciosos – entre tantos, para facilitar aqui a referência, o primeiro e o último. Mas gosto também daquelas passagens que se impõem ao tradutor como uma espécie de desafio, a exemplo da tradução, para o português, da tradução de Lenz, para o alemão, de alguns versos de Love's Labour's Lost, de Shakespeare (no décimo primeiro livro).



É possível dizer que, em De minha vida, a escrita de Goethe sintetiza todas as suas incursões pela literatura e por outras áreas do conhecimento?

Eu não diria todas, mas a obra certamente constrói um dos melhores retratos do quanto esse homem foi capaz de incursionar por tantas áreas diferentes.


A tradução figura entre os interesses do pensamento de Goethe. Suas reflexões sobre o processo de tradução são anacrônicas ou ainda podem ser retomadas de modo produtivo para a teoria da tradução? A tradução é tema que aparece na autobiografia de Goethe?

A tradução é tema recorrente: ora como experiência, em geral como exercício ou a serviço de alguma forma de criação; ora como forma visível de mediação, ao levar em conta tradutores e diferentes modos de tradução quase sempre que se refere a obras estrangeiras publicadas em alemão; ora como questão, ao tematizá-la como objeto de reflexão, a exemplo da famosa passagem no décimo primeiro livro.

Como todo pensamento sobre a tradução, também o de Goethe inscreve-se em seu tempo. Mas se podemos identificar em seu pensamento alguns traços que chamaremos de datados, boa parte de suas proposições ainda pode ser vista como mais contemporânea do que seriam capazes de admitir alguns teóricos contemporâneos da tradução. Apenas para nomear uma questão, entre tantas sobre as quais eu não teria como me alongar aqui, a tradução, para Goethe, é claramente uma prática que pode cumprir os mais variados fins e, portanto, uma prática com a qual podemos fazer muitas coisas diferentes, resultando, assim, em produtos textuais muito diferentes, ainda que igualmente legítimos. Esta, por exemplo, é uma posição que se afasta de certa visão vigente até hoje – em especial no chamado senso comum –, segundo a qual a tradução seria uma operação muito mais mecânica e restrita, cabendo-lhe cumprir apenas um único fim.


Apesar de ter algumas de suas principais obras traduzidas para o português do Brasil, parece que boa parte do público brasileiro ainda não conhece sua obra e sua importância dentro da história literária. Essa constatação é verdadeira?

Creio que, hoje em dia, a importância histórica da obra de Goethe seja mais reconhecida do que conhecida. Várias de suas obras mais famosas foram traduzidas no Brasil, mas ainda há muito o que traduzir e retraduzir. Projetos editoriais como o da Editora da Unesp, que tem em vista a publicação de um conjunto amplo de obras de Goethe – algumas ainda inéditas, outras em retradução, como a edição de Poesia e Verdade – podem contribuir não apenas para ampliar o conhecimento da obra de Goethe, mas, também, para ampliar o círculo de leitores efetivos de sua obra.


Pretende traduzir outras obras de Goethe? Quais?

Sim, seria ótimo poder trabalhar "com tempo" em projetos de mais fôlego envolvendo a obra de Goethe. Pois se há o que ser retraduzido, há também muita coisa menos conhecida que seria importante traduzir pela primeira vez. Gostaria de preparar, por exemplo, uma edição ampla da poesia de Goethe.


Quem são os principais tradutores de Goethe hoje no Brasil?

Comparado ao círculo de tradutores literários de outras línguas, não são tantos os tradutores da literatura de expressão alemã no Brasil. Em 2014, Tércio Redondo publicou a tradução d'As afinidades eletivas. Em 2016, Mário Frungillo publicou a tradução das Conversações com Goethe, de Eckermann. E, na virada de 2017 para 2018, saiu a tradução da Viagem à Itália, realizada por Wilma Patrícia Maas. Tenho notícia de vários outros projetos em andamento, o que parece apontar para um aquecimento da tradução e edição da obra de Goethe em nosso país.


De onde partiu seu interesse inicial para o estudo da língua alemã? Nos estudos de alemão, Goethe fez parte de suas leituras?

Quando criança, tinha uma curiosidade pela língua alemã, em razão da convivência com minha avó materna, de ascendência alemã. Meu contato inicial com a obra de Goethe foi através do teatro, a partir de uma montagem do Fausto. Depois veio o Werther. Todo o restante que li de sua obra se deu na Universidade (ou a partir dela).


Como professor de tradução na Universidade Federal do Paraná (UFPR), com quais disciplinas trabalha na graduação e na pós-graduação? Qual sua linha de pesquisa?

Trabalho com as disciplinas específicas do Bacharelado com ênfase nos Estudos da Tradução, oferecendo disciplinas de teoria da tradução, história da tradução e tradução literária. Como pesquisador, meu trabalho se constrói como um diálogo entre a teoria da tradução e o pensamento contemporâneo. Em síntese, interessa-me pensar a tradução sempre como uma forma de poiesis da relação, ou seja, a partir do que a tradução representa como questão de alteridade.


Além da tradução de De minha vida: poesia e verdade, quais outros trabalhos de tradução realizou? Quais poderia destacar?

Destacaria a tradução de E. E. Cummings (Editora da UnB, 2007), antologia que preparei com Mário Domingues e Adalberto Müller; a tradução de alguns poetas de língua alemã, como Paul Celan, Else Lasker-Schüler e Rainer-Maria Rilke (publicações em revistas); a tradução da Viagem ao Harz (Editora 34, 2013), primeira parte dos Retratos de Viagem de Heinrich Heine; e ainda o projeto de dupla tradução de uma novela alemã do final do século XIX, intitulada Der Schimmelreiter (1888), de Theodor Storm, que resultou n'A Assombrosa história do homem do cavalo branco e n'O centauro bronco, ambas publicadas, em conjunto, pela editora da UFPR, em 2006.


Atualmente, quais os trabalhos que vem desenvolvendo de tradução literária ou dentro dos estudos da tradução?

Venho trabalhando há alguns anos na tradução da obra do poeta Paul Celan. Há uma grande chance de que o primeiro livro ainda saia este ano, pela Editora 34. Além disso, estou envolvido em outros projetos de tradução da obra de Goethe – como, por exemplo, uma nova tradução do Werther – e de obras relacionadas a ele – como Lotte em Weimar, o romance goetheano de Thomas Mann. Estes devem sair pela Companhia. Na pesquisa, venho estudando as diferentes relações entre tradução, tempo e vida.


{n. 4 | agosto | 2018}

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