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Carmen Dolores: "A Semana"

Na próxima semana, chegará aos leitores nosso e-book Natal brasileiro em prosa: 1854-1932, antologia que reúne 20 autores, entre eles: Carmen Dolores. A seguir, publicamos na íntegra o capítulo contendo uma de suas crônicas.

 

1909


Carmen Dolores

É o pseudônimo utilizado por Emília Moncorvo Bandeira de Mello (RJ, 1852-1910). Além de contos e romances, Carmen Dolores assinou a célebre coluna “A Semana” (1905-1910) no jornal O Paiz (RJ, 1884-1930), mesma coluna ocupada anteriormente por Machado de Assis. Para esta coletânea, transcrevemos a primeira parte do texto publicado em 25 de dezembro de 1906, em que a autora reflexiona, entre outros assuntos, a respeito das razões para que um oficial da marinha tenha cometido suicídio às vésperas do dia de Natal.


 

A Semana


Passou ontem a grande, a doce e luminosa festa tradicional de cada ano ― e ainda nas salas onde se festejou Natal, aparece num canto de mesa o esgalhado e verde pinheirinho que despojaram de todas as suas quinquilharias refulgentes, tiradas à sorte pelos pequeninos jubilosos, mas de que pendem duas ou três últimas velinhas azuis e escarlates que de todo não arderam. Serão arrecadadas com o pinheirinho e os musgos do pedestal, para o ano próximo. A festa cristã, porém, ainda hoje continua com o chamado enterro dos ossos, disputadas às refeições caseiras as carcaças dos inúmeros perus sacrificados à data consagrada, únicas e verdadeiras vítimas do lindo e risonho dia; e do mesmo modo lourejam ainda restos de bolos, douradas fatias de ovos, tudo quanto serviu para reunir a família no remanso do lar, celebrando a paz e a harmonia que o divino Jesus pregou entre os homens.


Ai de nós! essa paz é essa harmonia são muitas vezes mentirosas... Comem o peru, bebem o vinho, devoram o pudim flamejante e aludem ao Menino Deus que morreu pela fraternidade humana; mas, no fundo dessas almas que parecem comungar juntas, unidas pelo sentimento de amor, reside o egoísmo, residem rancores, aversões, pequenas maldades, acidulando as camadas morais que se não desvendam ao olho do próximo, por seu lado encobrindo falhas iguais. E o Cristo bambino fica muito alto, no seu bercinho simbólico, todo branco; o Cristo fica muito longe, mesmo se mais tarde pregado a uma cruz dolorosa, golfando sangue pelas chagas que lanças brutais lhe abriram nas carnes ainda mortais, para que a evocação da sua imagem na visa cotidiana modifique o incurável mal da humanidade, que é a desarmonia das criaturas mais aparentemente unidas, partindo lado a lado o pão das festas de Natal.


Afinal de contas, sejamos francos, dessa tradução tão bela e que solenizamos sempre com as mesmas palavras, as mesmas formas, o Menino Deus entre cetins e franjas de ouro, a Virgem Maria iluminada pelo raio místico da lenda cristã, S. José de humildes mãos postas, e os Reis Magos, chegando vergados sobre os bordões, enquanto fora dos presepes a estrela cintila nos doces céus de papel azul, guiando para esse berço sem época peregrinos e animais diversos; dessa trama poética só resta a história emotiva, mas dos fins visados por Cristo nada se salvou.


E quando se vê, em vésperas do suave dia de ontem, um velho e honrado oficial de marinha buscar a arma suicida para acabar de um só golpe as torturas que o alanceavam, compreende-se que a alma do homem não tem mais hoje o consolo das crenças indestrutíveis, que encorajam os mais fracos a sofrer com paciência e esperança.


Séculos e séculos de luta, azedaram e irritaram os espíritos, hoje rebeldes à dor. E, de fato, se era possível sofrer com ânimo nesses tempos idos em que tudo ainda estava por construir e bastava como roupa uma túnica de lã e por alimento de um enxame de gente um pão e dois peixes, multiplicados pelo milagre divino à sombra das oliveiras; se uma rosa de Jericó era suficiente como ornato de um Seio alabastrino de mulher, e bálsamos e rezinas constituíam o único legume que ungia as formosas cabeleiras da época, penteadas sem espelho, à luz do luar ou das estrelas ― a verdade é que, nesta Idade que atravessamos, presenciando tanto gozo, tamanhos requintes de civilização, tanta febre ativa, e apalpando o luxo que vem da concorrência e do combate para conquistá-lo, a passividade dolorosa não é mais suportável. A condenação à apatia leva todos os nervos do ente moderno à exasperação, à explosão final que busca um revólver, um punhal ou o veneno.


Ah! dulcíssimo Cristo! nasceste quando os pastores ordenhavam ovelhinhas no cimo dos montes, cândidos e sem ambições. O canto das aves era a música que unicamente ouviram esses ouvidos ingênuos ao clarear das maravilhosas madrugadas, quando ajuntavam os rebanhos pacíficos. E nada mais queriam. Morriam como justos, estendidos numa pele de cabra, sem as moléstias que hoje tão inutilmente preocupam as faculdades intituladas sábias.


Sem conhecer a dor física nem a dor moral, porque também desconheciam os ardores, os grandes apetites e as vivas alegrias destes tempos, morriam como morre o dia, serenamente, sem convulsões, nem saudades.


Saudades de quê? Esse inocente e esbatido viver não comportava à derradeira hora saudades de nenhum bem em destaque.


Hoje, porém, a vida é a febre, o estímulo, a luta, a sede de felicidade, o esforço, para obtê-la ou conservá-la, enrijando músculos para não perder o lugar conquistado a pulso.


E o lento mal que derruba, afastando o mais valente das arenas da atividade, entorna pela alma adentro o filtro das resoluções desesperadas. Assistir aos outros viverem, não é mais viver. E ninguém condene o velho marinheiro que fez saltar os miolos, nas proximidades do poético Natal.


Perdoai-lhe, Cristo, que a culpa é tua. Deixaste que o mundo marchasse com a força impetuosa de um furacão ― e já não há mais lugar nele para a dor e para a paciência. Todos querem viver, gozar ― e o suicídio é o exclusivo recurso dos padecentes. Ou tudo, ou nada!


Entre parêntesis, boas festas aos graciosos leitores e as mais amáveis saudações para 1910.


***

(....)

Carmen Dolores.

 

- Natal brasileiro em prosa: 1854-1932 [e-book]

- Organização, notas e apresentação: Rafael Voigt Leandro.

- Edições Voz da Literatura, 2020.

- ISBN: 978-65-00-14098-9.

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