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A violência contra a mulher em 1926


Chrysanthème

Chrysanthème, ou Madame Chrysanthème, pseudônimo da escritora Maria Cecília Bandeira de Melo Vasconcelos (1870-1948), escritora e jornalista com forte atuação feminista na imprensa de sua época. Escreveu vários romances, entre eles: Enervadas (1922), reeditado pela editora Carambaia em 2019. Chrysanthème foi uma das principais colunistas do jornal O País, escrevendo para a coluna “A Semana” - a mesma coluna ocupada por Machado de Assis em anos anteriores e depois pela mãe de Crysanthème, a escritora Carmen Dolores. É de lá que a {voz da literatura} transcreveu o texto abaixo, publicado (sem título) pela autora no domingo de 21 de fevereiro de 1926, em que denuncia a persistente e perversa violência outra a mulher.


 

As senhoras feministas têm, realmente, conquistado no mundo inteiro superioridades e terrenos que, outrora, lhes eram injustamente negados. Muitas mulheres trabalham hoje com verdadeiro afinco e bravura, mostrando aos homens, seus rivais e combatentes na mesma arena da vida, que a inferioridade por eles a elas decretada não passava de mera fantasia ou de meio de reação da parte desse sexo, dotados de todos os direitos e de todas as licenças, atualmente, acrescidos de liberdade de matarem ou de empurrarem ao suicídio as criaturas crédulas e confiantes no seu apoio e no seu afeto. Na nossa terra, porém, a mulher ainda não conquistou, senão o triste direito de "cavar" o pão de cada dia e a leviana licença de se vestir parcamente, continuando a ser, mais do que antigamente, a vítima imbele e indefesa do seu marido, do seu amante ou do premier venu.

Encaremos os fatos debaixo do seu aspecto jurídico e da sua feição humana e observaremos que um só dia não se some nesse espaço, dentro do qual nos balançamos como pêndulas animadas, sem que um homem trucide moral e fisicamente a sua companheira legal ou efêmera, contando com a indulgência da justiça e a tolerância dos seus semelhantes em mentalidade e em sexo. Nesta hora fatídica, em que o amor passou a ser uma qualidade negativa ou uma palpitação atrasada, tendo mudado de forma e variado de fórmulas, vemos que será sempre soi-disant [supostamente] em nome dele que se cometerão as maiores crueldades e os mais hediondos crimes. Na época serena, em que a paixão amorosa não era tida como circunstância atenuante dos assassinatos perpetrados em seu nome, não se deparava com monstros tão perfeitamente classificados como esse Martinez, que, nessa tarde de Carnaval, fantasiado de pierrot, apunhalou a sua esposa, lassa dos seus maus-tratos e de sua perversidade.

Todos nós, homens e mulheres, compreendemos que o sentimento da honra ultrajada ou do ciúme levado ao seu auge possa levar um homem de princípios, de bem e de bondade provados a atentar, num segundo de demência, contra a vida daquela que lhe infamou o lar, lhe pisou o coração, lhe dementou o juízo. Compreendemos, sem, aliás, lhe atenuar em nada o negro e covarde ato, que, dominado pelo seu subconsciente, incapaz, no momento, de lhe governar o consciente, ele, homem, forte e armado se tenha atirado, como uma fera, contra a infeliz de mãos no ar, frágil, só e sem nenhuma espécie de defesa contra ele. O caso, porém, desse vulgar matador da desgraçada esposa, em Copacabana, nada tem que relembre sequer de longe esse estado de alma, tão invocado pelos advogados daqueles sinistros réus, péssimos modelos para os futuros criminosos, que hesitam ainda, com receio do Código Penal, em lhes imitar o gesto torpe, iníquo e brutal.



Página do Jornal O Paiz onde está publicado o artigo.

Durante o interrogatório de Martinez encontramos a prova da maldade desse homem nefasto, nas calúnias e mentiras com que ele salpica a memória da infortunada que, agora, jaz inerte no seu caixão estreito, muda e inteiriçada, impedida, portanto, de vir contar aos juízes do seu algoz as razões por que ela lhe fugira da casa e lhe desdenhara a pessoa.

Um grande jornalista dizia sempre que, para conhecermos deveras a vida de uma cidade e a cerebração exata dos seus habitantes, deveríamos ler diariamente as notícias policiais inseridas nas páginas dos jornais. É nelas que bate o coração de todo um povo, refletido nos vários incidentes aí relatados, às vezes com singeleza, outras com uma retórica abracadabrante, que lhes retirar o cunho real e emocionante. Tenho para mim que os homens são péssimos repórteres de polícia, pois que, em geral, os culpados e os acusados pertencem, por via de regra, ao seu clã, e a simpatia ou antipatia predominando, os fatos narrados por esses senhores são desprovidos da sua veracidade ou adquirem uma feição fantasista que deixam o público estatelado, inquieto ou mal impressionado.

Os nossos periódicos, visando a neutralidade e o sangue-frio nesses assuntos, deviam empregar para tal gênero de reportagem mulheres ardilosas, enérgicas e.... imparciais, porque, da opinião verdadeira dos seus leitores, se formarão a respeitabilidade e a fama de um jornal. Sempre asseverei ser a solidariedade masculina um caso sério, um número de importância, um símbolo a se temer, enquanto as mulheres, na sua simplicidade ou na sua soberbia, encetam sem fadiga e sem hesitação, umas contra as outras, combates à outrance [excessivos], combates em que não há, graças a Deus, vitórias nem derrotas para nenhum dos partidos, mas, exclusivamente, tristezas e descaídas para ambos.

Entretanto precisamos unir-nos, nós mulheres, forte e valentemente contra esses indivíduos tarados e perversões que nos tomam como alvos da bala das suas garruchas, do gume dos seus punhais, quando não como objeto passivo de sisas numerosas injustiças, maldades e barbarias. Existem, na atualidade, operando e escrevendo em várias folhas, um grande numero de senhoras talentosas, ativas e conceituadas. Por que, elas, que manejam tão sabiamente suas penas, não as usam como armas defensivas em favor das suas semelhantes trucidadas e contra seus vulgares assassinos, que nenhuma reação de honra ou de amor, sentires nesses seios ferozes, impeliu ao crime? Aqueles que, seguindo o exemplo do maior jornalista morto, percorrerem as notícias policiais terão a certeza de que a mulher, no nosso meio social, só conquistou, pelo feminismo, o direito ao trabalho áspero e à morte horrenda dada pelo... homem. Todas as manhãs, com fotografias ou sem elas, surgem nos jornais inúmeras narrações, relatando os nomes e as aventuras das vítimas de tais carrascos, muitas apresentando ainda, na morte, vestígios de passadas perversidades, outras procurando no suicídio uma porta contra o sofrimento, a humilhação, a tortura.

Formemos uma liga de apoio contra tais malvados e encetemos uma brava e audaciosa campanha, sobretudo contra esses vis matadores de mulheres, que sem honra e sem escrúpulo, quando as tiveram a seu lado, inertes e dóceis, as cobriram de ultrajes, de afrontas e de maus-tratos. Uma vez abandonados e, por isso, feridos na sua vaidade de homens, vemo-los, com um sorriso mefistofélico nos lábios e vestidos de pierrot, plantarem nos pobres seios, ardentes de seiva, mas, para eles, indiferentes, a lâmina fria de um punhal covarde! Precisamos, nestes tempos, em que voltamos à época temível de Gilles de Retz, que matava as crianças, como, hoje, se matam as mulheres, uma qualquer garantia que nos conserve a vida junto a alguns desses senhores, demasiado certos da sua impunidade ou fáceis apreciadores dos bons ares e do descanso das nossas penitenciárias.

Chrysanthème.


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