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A poética de Paulo Vanzolini em “Terra papagalorum”

Livro lançado pela Imprensa Oficial de SP revela uma nova dimensão do trabalho poético de Paulo Vanzolini.

 

Paulo Vanzolini (1924-2013) poderia dispensar apresentações. Porém, em um país como o nosso, em que várias personalidades de nossa cultura caem em profundo esquecimento, ou muitas sequer são reconhecidas, uma apresentação de Vazolini não é nada demais.

Formado em Medicina pela USP em 1947, Paulo Vazolini tornou-se popular como compositor. “Ronda”, interpretada por diversas vozes, como Inezita Barrosos e Nelson Gonçalves, é um das pérolas de seu cancioneiro: “De noite eu rondo a cidade/a te procurar sem encontrar (…)”. Outra, como “Volta por cima”, carrega mais alguns versos marcantes: “Levanta, sacode a poeira/E dá a volta por cima”. Cantada belíssimamente por diversos intérpretes, como Aracy de Almeida, Noite Ilustrada e Beth Carvalho. O compositor Vanzolini tem perto de 75 canções.


Paulo Vanzolini conciliou sua veia de compositor de sambas com a sua carreira de zoólogo. Fez doutorado em Harvard. Foi Diretor do Museu de Zoologia da USP e membro da Academia Brasilwira de Ciências. Produziu mais de uma centena de trabalhos acadêmicos e elaborou a reconhecida “Teoria do Refúgio” (que explica a biodiversidade das Florestas Amazônica e Atlântica do Brasil), juntamente com Aziz Ab’Saber e e o americano Ernest Williams.



Lançado no final de 2019, pela Imprensa Oficial de SP, em edição bilíngue (português-inglês), Terra papagalorum é um livro póstumo de Paulo Vanzolini com desenhos de Gerda Brentani (1906-1999), artista italiana que se radicou em São Paulo na década de 1940.

Terra papagalorum estava aguardando publicação desde a década de 1980. Foi Cecília Scharlach, coordenadora editorial da Imprensa Oficial de SP, quem organizou a obra e escreveu seu posfácio.

Terra papagalorum reúne mais de 80 “verbetes” sobre diferentes animais de nossa fauna. Porém, não são verbetes científicos escritos pelo zoólogo Vanzolini, mas, sim, textos leves, um híbrido entre poesia e coloquialidade, de um Vanzolini poeta, observador e amante da natureza. Um rápido exemplo é a definição da “Caranguejeira”: “A caranguejeira é feia mas/não é brava.//Pode ser desenhada como/máscara de guerreiro oriental (…)”.


À sua maneira, o livro carrega em si algo de um “bestiário”, gênero literário repleto de alegoria ou de fantasia na descrição de animais reais ou irreais. Se nosso conhecimento não falha, parece que todos os animais do “bestiário” de Vanzolini são do mundo real, ou melhor, do Brasil real.


Será precipitado dizer que Terra papagalorum ganharia em interpretação ao ser lido comparativamente com o Bestiário, de Júlio Cortazar, ou O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges, e tantos outros nessa linha?

Nesse sentido, leia só o que escreve Vanzolini para o inseto de nome “Jequitiranaboia”:


A jequitiranaboia procura o pau

seco para pôr seus ovos.

O caboclo pensa que foi o

Inseto quem matou a árvore.

E quem mata uma árvore só

com o pousar nela, a coisas

menores e menos duras, que

fará? Ainda mais que a cabeça

parece tanto uma caveira.


Algo parecido se repete na definição sobre a “lacraia, aranha de teia”: “(…) As viúvas-negras, as aranhas armadeiras e algumas/outras espécies de feições modestas matam - seu veneno/é tão ruim quanto o das cascavéis. Gostam de viver/junto do homem, em sua/própria casa.”


Sem parecer insistente a nossa tese de que há um bestiário em Terra papagalorum, separamos mais uma descrição, a do “Sapo-itanha”: “O sapo-itanha é extremamente/rancoroso e tem grande/capacidade maléfica./Experimente dar um pontapé na/itanha. Experimente só.//Ele entra na tua casa quando/você estiver dormindo, sobe no/teu peito e faz um montão de/espuma até te sufocar.//De manhã você está duro.”


Como um analista ou observador social, uma vez que os bichos afetam a vida de ribeirinhos, caboclos e de tanta gente por esse Brasil sem fim, o autor se aproveita de cantos populares, como estes versos conhecidos na Umbanda, quando define o “Tamanduá”: “Na pedreira de Xangô eu vi/pedra rolar/Samambaia pegou fogo/sapecou tamanduá.”


Há alguns animais apenas ilustrados por Gerda Brentani, sem textos de Vanzolini, como se os traços da artista bastassem e lançassem ao leitor a tarefa de descrever a espécie em destaque. Por vezes o texto de Vazolini dialoga diretamente com Gerda: “Com esta piramboia de pernas/tão desenvolvidas, não sei se/ Gerda estava pensando no/passado ou no futuro.” (p. 190)


Cabe ressaltar que Vanzolini escreveu os textos de Terra papagalorum a partir dos desenhos de Gerda. Muitas das ilustrações datam do início da década de 1960.



Gerda Brentani, artista plástica.

Em texto escrito para outro livro de Gerda Brentani (Pequeno Bestiário Brasileiro), o poeta Vanzolini caracteriza o trabalho da artista da seguinte maneira: “Os bichos que os olhos dela veem e as mãos exatas recriam têm uma doce humanidade animal, um ar de participação irônica, uma cumplicidade implícita.” É o que lemos também em Terra papagalorum.

Já próximo ao final do volume, em página com o título “Bichos com cara de gente”, o convite de Vanzolini ao leitor remete aos desenhos de Gerda, mas também ao “bestiário”: “Chega uma hora em que a/ realidade cansa./Aplique seus próprios nomes.”


Diante de Terra papagalorum, não há outra recomendação a se fazer: conheça Vanzolini.


 

RAFAEL VOIGT, editor da revista

{voz da literatura} e doutor em literatura pela UnB.

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