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Água de Mortas no porto Amazônia:

Foto do escritor: {voz da literatura}{voz da literatura}

uma placenta narrativa, eivada de veias e metáforas


por Paulo Nunes



ÁGUA DE MORTAS | Isadora Salazar | Ed. Patuá | 2018

Fodo com Amir, mas faço amor com Benício. Fodo com Amor regularmente. Três vezes por semana como convém a uma boa noiva cristã. Gozo pouquíssimo. Exatamente como convém a uma boa noiva cristã de um noivo muçulmano.

Aguardo.


I – No porto Amazônia, antes do embarque

Tenho acompanhado com especial atenção o intenso movimento das escritoras que produzem literatura no Pará, um estado, como os demais da nossa federação, misógino e falocêntrico no que tange a invisibilizar as vozes femininas. Não preciso dizer que as ‘escritoras paraenses’, ao debaterem-se contra tal postura, ajudam a implodir e a ressignificar o cânone da literatura brasileira, que, tal qual o cânone literário ocidental, é falocêntrico, branco, eurocêntrico. Tal constatação não chega a causar surpresa, pois, em verdade, aos que escrevem longe do eixo cultural São Paulo-Rio de Janeiro, o fazem com persistência e ousadia, tais como Eneida (Banho de Cheiro, Aruanda e História do Carnaval Carioca), Lindanor Celina (Menina que vem de Itaiara e Breve Sempre), Sultana Levy Rosemblat, Dulcinéia Paraense, são algumas das que ainda na primeira metade do século XX avisaram: “já que não somos aceitas pelos ‘literários clubes do bolinha’, façamos, então, a resistência com a melhor escrita”. O resultado é o que vemos 60 ou 70 anos depois das autoras pioneiras. No XXI, é evidente que o ‘jardim de Lílith’ floresceu. E seus frutos são os mais diversos: potentes, de dicção variada. Quem tiver em mãos estas autoras comprovará: Lilia Silvestre Chaves, Luciana Brandão Carrera, Josette Lassance, Gisele Ribeiro, Nathália Cruz, Izabela Leal, Paloma Franca Amorim, Gabriela Sobral, Laura Nogueira, diversas tendências e gerações, parte delas desvelada pelo rigoroso concurso literário nacional, Edital da Fundação Cultural do Pará.


II – O bilhete, o embarque

Água de Mortas é o mais recente livro de Isadora Salazar. Trata-se de um texto de estrutura narrativa bem urdida, publicado em São Paulo, pela editora Patuá em fins de 2018. Uma edição projetada por Leonardo Mathias, que optou pelo equilíbrio e pelo bom gosto, o que se comprova com uma capa atrativa aos olhos. Mathias assina também ilustrações e o projeto gráfico do livro. Água de Mortas é, provavelmente, um título oriundo da expressão ‘água morta’. Água morta, donde a autora empírica buscou as suas referências, é um fenômeno marítimo no qual as águas doces sobrepõem-se às águas salgadas, provocando uma paralisação do movimento das marés; esse “pause” cria uma paralisação dos corpos físicos, gentes ou embarcações, que desejam se locomover naquele espaço. Uma paragem que pode levar ao encalhe ou ao afogamento dos que ali estiverem imersos.

Ao tomarmos contato com a trama da narrativa de Salazar e conhecermos a intimidade de Marina, a protagonista e narradora, saberemos da relação intensa do título com a trama. Nos dias atuais de produções tão fartas e rarefeitas, um título bem concebido configura já o primeiro passo de uma narrativa que se não deseja ser grande, deseja marcar seus leitores.



Isadora Salazar, autora do romance Água de Mortas.

III – Já no mar: narrativas

Planejado de modo pouco convencional, a narrativa inicia-se com o epílogo de Marina e desfecha com o Prólogo de Marina. Entre a primeira instância estrutural, vê-se o “Lanço”, o “Salobro” e a “Charcação”. E como referências pós-textuais temos ainda o “Preâmbulo do Poço e a encomendação das almas”. Esta organização, aparentemente incongruente, não retira do texto sua linearidade; é fato que se trata de uma linearidade precária, mas linearidade na qual a vida de Marina (a personagem seria um alter ego da autora?) sofre uma tentativa de ser passada a limpo pela escritura da própria personagem que se narra e, ao narrar-se busca a superação de seus dramas pessoais e familiares. Estivéssemos ante a uma narrativa épica, a protagonista seria desafiada a ultrapassar seu próprio métron para vencer seus obstáculos, mas como no contemporâneo a narrativa perdeu a aura do heroísmo épico, sobra à personagem desafiar seus fantasmas. Nesta narrativa que descarta qualquer pretensão de salvação ou de redenção moral, o que se constata são experiências esfaceladas – sobretudo, e a partir de Marina – e marcadas por uma ancestralidade de uma burguesia decadente e corrupta, de que a protagonista luta/reluta para livrar-se, sem, no entanto, conseguir, enlaçada que se vê numa teia de ações densas e tensas.


IV – Passageiros: ou personagens, nomes e destinos,

Em Recado do Nome, de Ana Maria Machado (1978), livro que trata da narrativa de Guimarães Rosa, se aprende sobre a importância decisiva da escolha dos nomes pelos autores para suas personagens. O nome, segundo aponta Machado, é corresponsável pelo cumprimento de destinação das personagens na trama da narrativa. Deste modo conclui-se que Isadora Salazar foi, no mínimo, perspicaz ao nominar a protagonista-narradora da trama. Marina, afinal, é água marinha que se viu soterrada por águas outras, não exatamente as doces, mas amargas águas do passado ancestral; ela, Marina, tem, no imbróglio da trama, de esforçar-se para sobreviver à saga dos laços de sangue, enovelados em hipocrisias e desmandos, bem típicos de uma certa classe média alta brasileira. O nome da protagonista é, pois, um emblema, o fio do enlace, que conduz a narrativa.


V – Linguagem, linguagens: navegação que se reinventa

O que de melhor, no entanto, traz a narrativa de Isadora Salazar é o uso apurado de linguagem: híbrida, precisa, cirúrgica e poética, a escritora domina com maestria o autor diegético que conduz o leitor pelas venturas e desventuras de Marina. O texto de Salazar mistura momentos de lirismo e enlevamento diante das tensões cada vez mais intensas, tanto mais a trama avança maradentro do labirinto das personagens. O capítulo XVI (se é que se podem assim chamar as instâncias organizadoras do romance): é uma pequena mostra do apuro de linguagem: tensão e distensão; síntese e força expressiva. Se pensarmos numa enunciação em que a voz feminina se liberta de todo calabouço a que foi submetida em milênios de literatura ocidental (de que a Bíblia é uma demonstração inicial de uma literatura canônica), literatura falocêntrica, a narrativa de Isadora é um oásis, um pingo no oceano, que, no entanto, não mais está ilhada, sozinha, para a felicidade dos leitores que buscam a boa literatura brasileira contemporânea. Embora precise de uma revisão mais apurada para retirar-lhe algumas gralhas, esta narrativa de mulher está para além de uma figuração de gêneros, embora em Água de mortas o leitor sinta-se envolvido pela película de uma placenta, eivada de veias e metáforas.



PAULO NUNES, professor da Universidade da Amazônia, atua no curso de Letras e no Programa de Pós-Graduação de Comunicação, Linguagens e Cultura; participa de 3 grupos de estudos: Academia do Peixe Frito (CAPES/UNAMA); e Narramazônia: narrativas contemporâneas da Amazônia paraense (CAPES/ FACOM-UFPA/ PPGCLC-UNAMA). Integra também o Makunaíma: literatura, arte, cultura, história e sociedade na Amazônia, Brasil e América Latina – CNPq/UFPA.


{n. 10 | fevereiro | 2019}


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