How sharpen than a serpent’s tooth it is
To have a thankless child!
[Ter um filho ingrato é mais doloroso do que a mordida de uma serpente!]
– William Shakespeare
O pai levantava praticamente todo dia, de madrugada, para acordar o filho de sete anos. De segunda a sexta, a mesma rotina. Após o cumprimento de alguns afazeres domésticos, chegava cuidadosamente junto à cama da criança, de mansinho e devagarinho, e encostava a mão, carinhosamente, em seu ombro; pronunciava, sussurrando, o nome do filho — que quase sempre respondia com resmungos. Depois que conseguia colocá-lo de pé, dar-lhe o café-da-manhã e auxiliá-lo com as vestimentas e a higiene pessoal, levava-o para a escola.
Nas últimas semanas, durante o trajeto para o colégio, o garoto dera para reclamar dos sapatos. Todos na escola têm sapatos novos, pai. O meu está só o bagaço! O pai ouvia as reclamações com resignação; não tinha dinheiro sobrando para comprar um par novo. Pelo jeito, ter conseguido a bolsa para o filho não era o suficiente. A convivência com meninos mais abastados demandava outros gastos. Entre eles: sapatos novos.
O filho não tinha culpa se o pai não tinha muitos rendimentos, ou se tinha, não fora de propósito. A mãe falecera durante o parto, e desde então, o chefe de família vinha sustentando a si e a sua cria como dava. Tinham o básico. Uma TV, sonho de consumo dos dois, era apenas isso, um sonho. Quem sabe um dia ainda teriam uma para ver os episódios de Bonanza, O Vigilante Rodoviário...
Quem mandou pedir, praticamente implorar, para o diretor da “instituição tradicional, formadora das mentes mais brilhantes desde mil oitocentos e ...” um lugar para o menino, em troca de seus serviços como jardineiro do colégio? Acabou conseguindo. Agora que aguentasse as consequências!
A gota d’água veio dali uns dias, quando o filho disse ser alvo de chacota entre os colegas. Como você chega até a escola com esses sapatos? Estão tão gastos que é difícil imaginar como não desmancham no caminho! Você vai acabar ficando descalço qualquer dia desses, pé-rapado! — era o que diziam enquanto riam debochadamente. Quando ouviu o relato do menino, os olhos do pai marejaram, mas disfarçou antes que o filho pudesse notar qualquer coisa.
No dia seguinte, saiu com as últimas economias, juntadas a muito custo, e correu até a loja de calçados para comprar o tão pedido par de sapatos. Seriam novinhos em folha. Saiu do comércio com um ar satisfeito e cheio de si. Seu corpo irradiava alegria e contentamento. Afinal de contas, era pai e estava conseguindo, na medida do possível, prover seu rebento com tudo que ele precisava.
Na manhã de sábado, não foi acordar o garoto; esperou que ele levantasse em seu próprio tempo. Assim que o menino acabou a refeição matinal, chamou-lhe para a sala. Vem cá filho, tenho uma surpresa! Ao avistar o pai, notou o pacote em suas mãos. Abra! Pegou o presente e rasgou o embrulho com vontade. Quando viu o que era, um olhar de desapontamento preencheu o rosto do garoto. Não são os que eu queria! Por que não comprou sapatos iguais aos dos meus colegas? Jogou a caixa e os calçados no chão e saiu correndo.
O pai ficou, por um instante, sem entender o que havia acontecido. Triste e desolado, ruminava a mais recente decepção. Como é possível ter um filho tão ingrato? Ele não sabe que fiz o melhor que pude? Recolocou, cuidadosamente, os sapatos de volta na caixa. Embrulhou novamente o pacote e guardou-o no armário do seu quarto.
...
Em seu vigésimo primeiro aniversário, o filho voltou à casa do pai para fazer-lhe uma visita em retribuição à realizada pelo idoso no mês anterior. Criaram esse costume de encontros mensais desde que o rapaz havia se mudado de casa, no final da adolescência — atualmente estava na faculdade, trabalhava e morava sozinho. O pai encontrava o filho dia tal; dali um mês, era a vez do filho devolver a visita, e assim sucessivamente.
Ao abrir a porta da frente, não avistou ninguém. Estranhou a ausência do pai. Geralmente o encontraria na sala ouvindo música ou o noticiário no radinho de pilha antigo. Acabaram conseguindo uma televisão velha, mas o pai mal a usava. Quando não estava com o ouvido grudado no seu aparelhinho propagador de ondas sonoras, lia livros de ficção ou folheava revistas de jardinagem.
O filho, então, começou a procurá-lo pela casa. Vasculhando os cômodos, um a um, acabou dando de cara com o guarda-roupa do quarto do pai. A porta do armário estava entreaberta. Saiu do aposento, às pressas, com um embrulho embaixo do braço em direção ao quintal. Quando, enfim, encontrou seu progenitor a regar a pequena horta dos fundos da casa, deitou o pacote no chão, ajoelhou-se diante do idoso, e, aos prantos, beijou-lhe as mãos, dizendo: Me perdoa, pai! Me perdoa!
Encabulado com a situação, o velho tentava desvencilhar suas mãos sujas de terra do rosto do filho. Já não tinha a mínima ideia do porquê o jovem chorava compulsivamente e lhe rogava perdão com tanto ardor.
RAFAEL GOBBO, jornalista e escritor, é autor do livro de contos Pancadas (Viseu, 2017).
{n. 9 | janeiro | 2019}
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