top of page

Paris II (1886) | Júlia Lopes

{Na edição de A Semana de 2 de outubro de 1886, é publicado o terceiro artigo de Júlia Lopes com impressões de sua excursão europeia. A escritora dá continuidade a sua crônica sobre Paris, iniciada na edição anterior de A Semana.}



PARIS

 

Ainda a respeito de flores, contaram-nos este caso, que prova até que ponto os franceses as admiram, o quanto exploram essa admiração, fazendo-as, - inocentes vítimas - muitas vezes cúmplices dos seus delitos...

comerciais.

 

Uma ocasião, dizia-nos alegremente um espirituoso companheiro de hotel; um amigo meu encomendou, num dos mais afamados restaurant, por alto preço, um almoço, que devia oferecer a uma elegante baronesa estrangeira, curiosa de ver bem Paris, e a seu marido, o barão, grande conhecedor e esmiuçador de todas as sutilezas do bom gosto. Que nada falte, recomendava ele; os pratos mais esquisitamente saborosos, as frutas mais raras, os vinhos e licores mais delicados...

 

Foi tudo previsto, e estipulada a avultada soma de todas as gulodices que deviam figurar no almoço. O meu amigo retirou-se satisfeito, apesar de quase arruinado...

 

Ao voltar à esquina lembrou-se, porém, de que se esquecera de alguma coisa, e voltando atrás recomendou

que se não esquecessem de colocar na sala algumas flores.

 

- Oui, Oui, monsieur, responderam-lhe rápida e cortesmente: e ele saiu tranquilo.

 

A dizer a verdade tinha razão: uma mesa a que falte um ramo, é como uma ave a que falte uma asa, observava a pessoa que nos contava essa história.

 

No dia seguinte, à 1 hora, a loira e esbelta baronesa desabotoava as luvas, prendia num botão do seu corpete de veludo escuro à ponta do guardanapo, sentando-se na florida e elegante sala reservada do restaurant.

 

Correu alegremente todo o tempo do almoço. Os pêssegos e as uvas iam desaparecendo dentre as rendas das fruteiras, os vinhos das garrafas de cristal. O barão, bon causeur, dizia histórias espirituosas; a baronesa mostrava-se divertida e o meu amigo contentíssimo.

 

Findo o almoço, separaram-se; os-estrangeiros dirigiram-se para o Bosque de Bolonha, o meu amigo para o comptoir.

 

Depois de ter formulado um agradecimento muito lisonjeiro pelo bom serviço, pôs sobre a secretaria a quantia estipulada na véspera[1].

 

- Perdão, notou o secretário, o Sr. esqueceu as flores...

 

- Ah! sim... e as flores?

 

Custaram-lhe tanto... respondeu no tom mais natural le maître d'hotel.

 

O meu amigo soube então que as flores que haviam perfumado e alegrado, que perfumavam e que alegravam, que perfumariam e alegrariam ainda durante toda a tarde a elegante sala cor de pérola do restaurant, eram duas vezes mais caras do que todos os pratos esquisitamente saborosos servidos no almoço, todas as frutas raras e todos os licores finos...

 

Fechado este aparte voltemos a falar do fino e apurado gosto do povo francês.

 

Era sempre um público apreciador, expansivo, impressionável o que víamos em frente aos belos modelos do Luxemburgo, aos inúmeros quadros

do Salon, as esplendidas e inolvidáveis telas e estátuas do Louvre.

 

O Louvre! oh! minhas amigas! se eu vos pudesse dar uma simples ideia do deslumbramento que ele me causou!

 

Que brilhantismo de pinturas... que opulência de mármores!

 

Ainda há bem poucos dias alguém, cujo espírito é muito superior ao nosso, considerava-nos, numa adorável carta, felizes por termos aí contemplado a Vênus de Milo.

 

A encantadora Vênus!

 

Há tanta sedução para o espírito, há tanto enlevo, tanto, que o tempo em Paris passa com uma rapidez vertiginosa.

 

Assistindo no sucesso de Gayarre na Grande Ópera, ou contemplando o majestoso túmulo de Napoleão I nos Inválidos; passando uma hora no café cantante dos Embaixadores, ou admirando concentradamente a magnificência de Notre Dame de Paris; passeando no Trocadero, o delicioso Trocadero, ou indo por entre as sepulturas do Pére Lachaise, lendo os nomes dos escritores e músicos que amamos desde que os lemos; assistindo ao Excelsior no Eden theatre, ou penetrando nas catacumbas do Pantheon, onde Victor Hugo repousa coberto de flores; indo rio acima até ao risonho parque de St. Cloud, ou assistindo a um drama moderno; fazendo oração na Magdalena, ou vendo um espetáculo do Hipódromo; caminhando nos boulevards e nas avenidas cheias de vida, de rumor de vozes e de alegria, ou entrando na Capela expiatória; passeando nos belos Campos Elíseos, ou nos jardins, onde as crianças riem alto, correndo, as senhoras fazem tricot, o sol brinca na relva por entre a ramaria e os cisnes deslizam mansamente na água; contemplando todos os esplendores da arte e esses alegres trechos da vida parisiense, instrui-se, educa-se a gente e sente, o que já dissemos no princípio deste artigo: que não vê todas essas coisas pela primeira vez.

 

Numa ocasião, em Buttes Chaumont, fizemos notar a uma amiga um quadro, dizendo-lhe: --É singular; já vimos isto!

 

Ela riu-se, e, fingindo acreditar, disse: - Há muitas fotografias de todos os recantos de Paris...

 

- Mas as personagens?

 

Contentou-se com encolher ligeiramente os ombros, sorrindo com a sua fina ironia... francesa.

 

Em frente aos nossos olhos, perto de uma rocha escarpada do pitoresco jardim, riam alegremente três raparigas novas. Uma tinha um livro aberto nos joelhos, outra bordava; a do lado esquerdo, mais iluminada do sol, não prestava atenção a trabalho de espécie alguma, falando mais que as duas companheiras. A poucos passos delas uns operários de blusa de riscado azul, bonet deitado para trás, cachimbo pendente do canto da boca, olhavam altivamente para os passeantes; um deles lia alto um jornal, recostando-se indolentemente num banco. Entre as raparigas e eles ia uma velha pobre, dando a mão a uma menina de cabelos castanhos e olhos inteligentes. Por um rasgão do chapéu de sol passava um raio de luz, que tingia de uma cor amarelada a touca branca da velha...

 

Sim, nós já viramos aquele quadro; mas em que páginas? Isso é que nos não lembrou na ocasião.

 

Talvez que a minha leitora se ria igualmente, e levante os ombros num gesto de desdenhosa incredulidade... a esta impressão tão ingênua e lealmente revelada. Mas, se tem lido algum livro em que venham descrições da vida das ruas em Paris, se se tem interessado pela pobre avó que leva carinhosamente a netinha ao passeio, onde há música, onde os operários à vontade se divertem conversando, onde as Mamãs levam os seus bebês para fazê-los respirar o ar perfumado e correr na areia, e onde as senhoras de vestido de seda sentam-se ao lado das de avental de chita, - se leu com atenção esses livros, há de forçosamente compreender-nos.

 

Quantas vezes não se dão na vida real fatos extraordinários com os quais nos parece haver sonhado já?

 

Como indecifráveis, respeitemos esses mistérios e calemo-nos por hoje a respeito de Paris, a bela, a encantadora capital, de que se não sai sem tristeza, sem verdadeira pena… de a deixar!

 

Lisboa - 2 de Agosto de 1886.

 

JÚLIA LOPES.

 


[1] Em A Semana, este trecho foi publicado com falha no final do período, a saber: “Depois de ter formulado um agradecimento muito lisonjeiro pelo bom serviço, pôs sobre a secretaria a quan- estipulado no véspera.” [sic]. Optamos, s.m.j., por registrar essa passagem como “... quantia estipulada na véspera.”



 

Fonte

A SEMANA [RJ, 1885-1895]. Ano 1886, Edição 092, p. 318-319. Disponível na Hemeroteca Digital Brasileira, Fundação Biblioteca Nacional.


 

Projeto Memorial da Literatura. Revista Voz da Literatura. Janeiro de 2024. Notas, transcrição e revisão: Rafael Voigt Leandro.


 

Leia a segunda crônica de Júlia Lopes sobre sua viagem à Europa em 1886.


0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page