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O Alforje

Atualizado: 5 de mai. de 2020

Romance de autora iraniana desafia o leitor a desvendar mistérios da construção da narrativa.


{Bahiyyih Nakhjavani. O alforje. Trad. Rubens Figueiredo. Porto Alegre: Dublinense, 2019.}



Bahiyyih Nakhjavani
Bahiyyih Nakhjavani

A iraniana Bahiyyih Nakhjavani (1948-), radicada atualmente na França, pertence à linhagem de autores como os de As mil e uma noites, Cervantes em suas Novelas exemplares, Geoffrey Chaucer em Os Contos de Cantuária.

Essa tradição literária é capaz de construir uma valiosa tessitura ficcional por meio da junção de histórias curtas.

O Alforje se inscreve, segundo consta, no gênero romance. Seus capítulos, contudo, são dotados de certa autonomia. Ao mesmo tempo em que vão sendo alinhavados meticulosamente em torno de personagens que, de alguma maneira, se inter-relacionam e se relacionam com um misterioso “alforje”.

São personagens de tipos universais: ladrão, noiva, líder (de um bando), cambista, escrava, sacerdote, peregrino....

Mas na dinâmica entre universal e local, a iraniana Bahiyyih Nakhjavani lança todos eles entre as cidades sagradas de Meca e Medina. Espaço geográfico dotado de religiosidade e hábitos culturais cujos significados são ainda incompreendidos por muitos de nós, ocidentais.

A força da literatura de Bahiyyih Nakhjavani não permite pintar os personagens como seres exóticos em uma realidade exótica. São tipos universais, como dissemos. É por isso que rompem com os contrastes entre ocidentais e orientais. Provavelmente porque Bahiyyih Nakhjavani conheça pela própria alma a cultura, as religiões e a vida daquela região.

Do primeiro capítulo, com o Ladrão - como todo e qualquer gatuno, um ambicioso -, rouba um alforje e pouco compreende o que encontra dentro dele. O mistério por trás de um objeto tão usual entre viajantes e peregrinos reserva à narrativa um de seus fios condutores.

A cada capítulo, a cada história sobre como os personagens cruzam com o alforje, por vezes de modo ocasional, ele se revela como um objeto capaz de interconectar os personagens, mesmo que sequer esses tenham alguma afinidade entre si e estejam em núcleos distintos da narrativa. O alforje transforma-se em totem a ser adorado ou repudiado por cada um deles.

O alforje carrega papéis escritos em caligrafia admirável. Faz lembrar um outro objeto: o livro. Em suas folhas está uma caligrafia a ser decifrada. Mesmo princípio se aplica à narrativa de Bahiyyih Nakhjavani.

Muito há o que se falar sobre O Alforje. Vários aspectos poderiam ser analisados de modo fecundo. É interessante, contudo, observar como as personagens femininas, em cultura que reserva à mulher um papel de segundo plano, exprimem sua força diante da sociedade teocrática e patriarcal.


Por exemplo, uma das razões para a peregrinação do personagem Sacerdote foi uma mulher. Veja-se como ela é caracterizada pelo narrador:

"Ela tinha chegado a Karbila uns nove meses antes, quando ele ainda era estudante. Foi logo depois da morte de um dos professores mais conhecidos nas escolas do sikhismo, e aquela mulher tinha adquirido autoridade suficiente para lecionar suas aulas de trás de uma cortina. Certamente, tinha credenciais impecáveis de uma família de sacerdotes. Certamente, era poeta e uma erudita destacada. Mas era mulher! O inferno inteiro tinha desabado sobre a comunidade xiita do Iraque por causa dela." (p. 177)

Outra personagem que desafia a “lei” da tradição imposta à mulher no Oriente Médio é a Escrava:

"A mulher chamada Sheba não era exceção. Nascera com as algemas da lei de Moisés e com as correntes da escravidão nas canelas; carregava a pesada canga de superstições e de preconceitos em seu pescoço comprido e negro. Porém, além de tudo que havia herdado dos ancestrais, acrescentava ainda uma inteligência sombria e taciturna, que era só sua, uma mente que se detinha na desolação e era ávida por devoção, um espírito inclinado à melancolia e ao desespero. Tinha uma capacidade de autopunição e obediência que se enraizava nas crenças gnósticas de uma construção severamente negativa. Era isso que tornava amargo seu riso." (p. 124)

Elas desafiam nossa percepção ocidental acerca da cultura desse lócus e dos significados e valores atribuídos aos gêneros.

É também com um falso Dervixe que se escancara para o leitor como os ocidentais subestimam os homens e mulheres do Oriente Médio, permeando-os de preconceitos e falsas percepções a respeito de um complexo cultural que pode nos lançar em uma verdadeira tempestade de areia no deserto.

Permite lembrar, inclusive, o crítico literário Edward Said na última parte do livro Orientalismo: “O Oriente que aparece no Orientalismo, portanto, é um sistema de representações estruturado por todo um conjunto de forças que introduziram o Oriente na erudição ocidental, na consciência ocidental e, mais tarde, no império ocidental. (...)”

Não obstante a dialética entre ocidental e oriental latente, O Alforje serve como obra mediadora e capaz de desvelar significados de um mundo desconhecido pelos ocidentais.

Na mediação de significados de O Alforje, não poderia faltar um tradutor à altura de uma obra literária de alto quilate. E esse é Rubens Figueiredo, tradutor reconhecido, entre outras coisas, por traduzir com rigor obras de Tolstói diretamente do russo.

A tradução de O Alforje é fiel a certas palavras de significados culturais intraduzíveis, disponibilizando um pequeno glossário ao final da edição, embora a versão original da obra seja em língua inglesa (The Saddlebag) do ano de 2000.

A editora Dublinense conta em seu catálogo com outro título de Bahiyyih Nakhjavani: Nós e eles. A depender da leitura de O Alforje, é outro romance a ser lido com olhos atentos.

RAFAEL VOIGT, editor da {voz da literatura}



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