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A tradução da literatura infantil em libras e a formação de leitores literários

Atualizado: 16 de jun. de 2021

por Arlene Batista da Silva*



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Pensar sobre a educação literária de surdos na segunda década do século XXI no Brasil, exige, antes de tudo, uma compreensão sobre quem são esses sujeitos e em qual contexto histórico e social essa atividade se insere. Baseados nos Estudos Surdos (VEIGA-NETO; LOPES 2007, VIEIRA-MACHADO, 2007), entendemos que o surdo é um sujeito produtor e consumidor de cultura que se cria a partir da experiência visual, da língua de sinais, de um modo diferente de ser e perceber o mundo (KARNOPP; KLEIN; LUNARDI-LAZZARIN, 2011). Em oposição a essa concepção, no início do século XXI, políticas educacionais definiram o surdo como sujeito bilíngue que deve dominar a Libras e o português na modalidade escrita. Nessa lógica autodenominada “inclusiva”, o surdo é “acolhido” na escola regular – devendo se adequar, de modo a causar o mínimo de mudanças estruturais no sistema educacional.


Tendo em vista esse novo modelo educacional imposto ao surdo, podemos, a partir de agora, apresentar pelo menos duas abordagens de formação literária que vêm sendo oferecidas a esses sujeitos na educação básica. A primeira está fundamentada na lógica “inclusiva”, na qual o ensino de literatura atende a fins pedagógicos, tais como: a) desenvolver habilidades de leitura do português; b) escrever palavras e frases em português; c) aprender conteúdos escolares de geografia, ciências, história, etc. Todos esses conhecimentos são transmitidos pelo professor regente (que geralmente não recebeu qualquer formação para trabalhar com o surdo), que se sentirá menos despreparado, ao receber na sala de aula o apoio do intérprete de Libras, profissional responsável por mediar a comunicação com o aluno surdo.


Na segunda abordagem, o ensino de literatura está fundamentado no conceito de prática, de vivência da literatura, pois o ponto fundante do trabalho com a literatura na escola é, ou deveria ser, a leitura do texto literário: “[...] em qualquer etapa da escolaridade que for, seria preciso, antes de tudo ler, ler para si, ler uma variedade de gêneros e tipos, ler o que gostar – para poder ler com proveito o que a escola pedir” (REZENDE, 2014, p. 38).


Obviamente, essa abordagem diverge da anterior (pautada na política da inclusão), pois está baseada na identidade cultural e linguística dos surdos. Nessa lógica, a leitura literária a ser trabalhada com a criança surda deve ser, sobretudo, das obras em língua de sinais, por professores surdos e/ou bilíngues. Não desprezamos o fato de o livro de literatura infantil impresso e com abundância de imagens ser um excelente material para o trabalho de leitura literária, mas este deve ser posto em diálogo com a manifestação artística natural da comunidade surda, isto é, com a literatura sinalizada, performática. No trabalho apenas com obras em versão impressa, os aspectos estilísticos em língua de sinais podem perder sua potência ou são minimizados pelo foco na interpretação das imagens.


Em relação à literatura infantil em língua de sinais, evidenciamos que há um número reduzido de obras traduzidas para Libras, dentre as quais podemos citar: os contos de fadas, fábulas, lendas, literatura infantil mundial e produções autônomas de membros da comunidade surda. Embora a quantidade seja (ainda) insuficiente, trabalhar com a tradução dos clássicos pode proporcionar múltiplas leituras que nos permitam vivenciar o jogo simbólico da linguagem, o ludismo, a imaginação. E também o contato com o mundo, com os conflitos e as contradições dos contextos em que estamos inseridos.


Tomando como princípio a leitura literária como prática, como experiência (DALVI, 2013), buscamos apresentar algumas propostas de trabalho em que a literatura em Libras ganha papel proeminente na formação do surdo. Nessa ambiência, o aluno surdo lê/assiste à obra em sinais e transforma o seu corpo num espaço de materialização do texto literário. Tais práticas de leitura tomam como referência, inicialmente, a questão da expressividade, mas não se fecham nessa dimensão.


Ressaltamos que não temos, aqui, a pretensão de criar um modelo a ser aplicado a todos os alunos em todos os contextos. Isso porque, conforme Lacerda (2015), muitas crianças surdas ao ingressarem no Ensino Fundamental ainda não conhecem a língua de sinais. Portanto, o trabalho com o texto literário precisa levar em conta essa realidade.


Alguns princípios para iniciar, com estudantes surdos, o trabalho com a leitura literária no Ensino Fundamental são:


a) Selecionar vídeos com obras literárias em Libras que estejam adequadas ao nível linguístico em Libras do aluno surdo. Para crianças que estão sendo alfabetizadas na Libras, é importante oferecer vídeos com narrativas e poemas curtos, com ilustrações e poucos personagens. Outra opção é encenar o texto literário para os alunos assistirem;


b) Realizar sistematicamente a leitura literária com os alunos surdos. A nosso ver, desenvolver projetos de literatura em Libras apenas em setembro, na semana do surdo, é um desserviço à formação de leitores surdos;


c) Dedicar-se à leitura literária sem a pretensão de finalizá-la em uma única aula. Apresentar o vídeo sinalizado fazendo pausas para comentar partes da narrativa, criar um suspense sobre o que vai acontecer com a personagem principal e retomar a leitura na aula seguinte podem gerar a curiosidade e o interesse das crianças para conhecerem o desenrolar da trama e, com isso, construir o hábito da leitura;


d) Oferecer ao surdo primeiro o texto em Libras. Explorar a leitura do texto sinalizado materializada no corpo do tradutor: as cenas, os personagens, o cenário, o enredo, o desfecho. Incentivar a criança a perceber que as expressões faciais e corporais do tradutor revelam o perfil de determinado personagem e suas intenções no desenrolar da trama;


e) Após familiarizar o leitor surdo com esses aspectos estilísticos, o professor pode apresentar-lhe a mesma obra em versão impressa com ilustrações. Recriar, com a criança, a narrativa em Libras a partir da leitura das ilustrações. Estimular a incorporação do comportamento e das ações dos personagens no corpo do leitor. Pode-se, ainda, filmar essa leitura como forma de “permitir a experiência de ensaiar produzir literatura, como resposta amorosa ao ato de ler” (DALVI, 2013, p. 82);


f) Na medida em que os alunos forem ampliando sua compreensão leitora e o domínio da Libras, o professor pode provocá-los a leituras que entrelacem o texto literário com a vida objetiva: “a Madrasta é má”, “O casamento como forma de ascensão social”, “a passividade, submissão de Cinderela”, “O príncipe como sujeito de poder – herói que salva Cinderela, resgata-a da vida sofrida”, etc. A intenção aqui é, sobretudo, problematizar esses valores – moralistas e preconceituosos – presentes na narrativa - e na sociedade - e confrontá-los com a vida real: As madrastas na vida real são boas, más, ou as duas coisas? E as mães? Hoje em dia, o casamento é uma forma de ascensão social? Como é postura das mulheres nos dias de hoje: submissas ou independentes? Existe (des)igualdade nas relações de poder entre o homem e a mulher na sociedade?


Essas discussões – e tantas outras – evidenciam que “os textos literários não podem ser meros pretextos para aprendizagem gramatical ou metalinguística, porque não se esgotam na superfície textual” (DALVI, 2013, p. 88). O texto pode levar o aluno surdo a reflexões mais amplas, mais significativas, porque entram em diálogo e mesmo em confronto com o mundo da vida e o fazem problematizar os papeis sociais, históricos e culturais existentes na sociedade.


Esperamos ter contribuído para a discussão sobre a educação literária do surdo no Ensino Fundamental, sem pretensão alguma de esgotar todas as possibilidades para se trabalhar com o texto literário em sala de aula. Nossa intenção foi, sobretudo, pensar práticas de leitura que se distanciem daquelas que tornam o aluno surdo um sujeito passivo que nada tem a dizer, que vive a memorizar e escrever palavras soltas; que não se apropria de outros discursos para ampliar seu discurso interior e transformá-lo num discurso múltiplo, heterogênero.



 

ARLENE BATISTA DA SILVA, licenciada e doutora em Letras, é professora do curso de bacharelado Letras-Libras da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: arleneincrivel@gmail.com

 

Referências

DALVI, M. A. Literatura na escola: propostas didático-metodológicas. In: DALVI, M. A.; REZENDE, N. L.; JOVER-FALEIROS, R. (Orgs). Leitura de literatura na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2013, p. 67-98.


KARNOPP, L. B.; KLEIN, M.; LUNARDI-LAZZARIN, M. Produção, circulação e consumo da cultura surda brasileira. In: ___. Cultura surda na contemporaneidade: negociações, intercorrências e provocações. Canoas: Editora da ULBRA, 2011.p. 15-28.


REZENDE, N. L. A formação do leitor na escola publica brasileira: um jargão ou um ideal? In: ALVES, J. H. P. Memórias da Borborema 4: discutindo a literatura e seu ensino. Campina Grande: Abralic, 2014. p. 37-54.


VEIGA-NETO, A.; LOPES, M. C. Inclusão e Governabilidade. Educação & Sociedade.

Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial, p. 947-963, out. 2007. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 09 de mai. 2021.


VIEIRA-MACHADO, L. M. C. Traduções e marcas culturais dos surdos capixabas: os discursos desconstruídos quando a resistência conta a história. 2007. 186 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007.

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