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A Formação e suas circunstâncias

por Alvaro Santos Simões Jr.



Como se sabe, Antonio Candido foi assistente de Fernando de Azevedo de 1942 a 1958, mas tentou sem sucesso tornar-se catedrático de Literatura Brasileira em 1945. Embora não tenha conquistado a cadeira por ter prevalecido no concurso, segundo Antonio Dimas, o “critério burocrático e não o intelectual” (Revista USP, v. 118), obteve com a aprovação em segundo lugar o título de livre-docente em Literatura Brasileira.


Sua participação no concurso não deixava dúvida de que pretendesse migrar da Sociologia para as Letras, o que acabou por fazer somente em 1958 com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis (SP).


De 1941 a 1947, dedicou-se à chamada crítica de rodapé na revista Clima (1941-1944) e nos jornais diários paulistanos Folha da Manhã (1943-1945) e Diário de S. Paulo (1945-1947). Apesar do prestígio literário que advinha de ser crítico titular de jornais importantes, Candido consagrou-se a partir de 1945 à redação da obra Formação da literatura brasileira, que acabou por ser, nas palavras do citado Dimas, seu “passaporte definitivo e permanente para ingresso” na área dos estudos literários. Valendo-se de sucessivas licenças, afastou-se do ensino de Sociologia para revisar o primeiro (1956) e o segundo (1957) volumes daquela que seria sua obra máxima. O longo tempo dedicado à Formação e o empenho em seu acabamento revelam que seu autor dela muito esperava.


No período em que Candido redigia a Formação e preparava-se para o ingresso na área por que era apaixonado, o estudo e o ensino da literatura passavam por profundas alterações estimuladas no Brasil pelo combate incansável de Afrânio Coutinho que, em 1948, após longa temporada de estudos nos EUA (Universidade de Columbia e outras), inaugurou no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, a seção “Correntes cruzadas”, mantida até 1961.


Da sua tribuna jornalística, Coutinho combatia sem tréguas e sem piedade a crítica de rodapé. Para ele, era um equívoco chamar aos titulares das colunas dedicadas à literatura de críticos, pois, na verdade, não passavam de reviewers. Mencionando sempre com prudência as exceções de praxe, acusava os críticos dos rodapés de formação inadequada e de falta de critérios rigorosos, isto é, científicos. Por isso, os pronunciamentos hebdomadários dos jornais a respeito de uma miríade de publicações, contemplando gêneros distintos e uma legião de autores, ficavam fatalmente expostos à suspeita de improviso e à superficialidade inevitável. Diante da magnitude do movimento editorial na segunda metade do século XX, a crítica devia assumir cada vez mais um caráter de trabalho coletivo a ser realizado por especialistas universitários. A obra A literatura no Brasil (1955-1959), organizada por ele, já representava um cumprimento desse imperativo.


Segundo Coutinho, os críticos tinham de receber formação universitária específica, o que somente se poderia obter nos cursos de Letras, aptos a transmitir o conhecimento de bases científicas e filosóficas a respeito do fenômeno literário. Nas faculdades de Letras, seria assim forjada a nova crítica, que, seguindo o exemplo do formalismo russo, do new criticism anglo-americano, da explicação de texto francesa e da crítica filológica, entre outras vertentes, deveria ancorar os estudos literários na análise intrínseca ou imanente dos textos.


Além da coluna do Diário de Notícias, Coutinho serviu-se dos livros Correntes cruzadas (1953) e Da crítica e da nova crítica (1957) para divulgar suas ideias e fortalecer sua luta contra a crítica jornalística. Eram novas armas da cátedra contra o rodapé.


Candido ia escrevendo a sua Formação enquanto a doutrinação de Coutinho ia encontrando ressonância e a nova crítica conquistava novas adesões. Como sói acontecer, os neófitos eram mais ortodoxos e fervorosos do que o formulador da doutrina. Nesse contexto, vinha à luz a obra historiográfica de A. Candido, que exercera por longos anos a crítica de rodapé e o magistério de Sociologia. A “Introdução” da obra, datada de agosto de 1957, fora escrita quando a pregação de Coutinho atingia o seu ápice. Não será, portanto, absurdo pensar que o autor de uma obra fundamentada no conceito sociológico de sistema se sentisse na obrigação de dar respostas sutis às críticas naquela altura já formuladas por muitos. Como assinalou o próprio Candido no prefácio da segunda edição, críticos e noticiaristas interessaram-se quase exclusivamente pela “Introdução” quando a obra finalmente veio à luz em 1959.


Nesse texto preambular, aqui citado pela décima edição, de 2006, Candido defendeu o “ponto de vista histórico” como um dos “modos legítimos de estudar literatura”, amparado no pressuposto de que “as obras se articulam no tempo”, permitindo discernir-se “uma certa determinação na maneira por que são produzidas e incorporadas ao patrimônio de uma civilização” (p. 31). Tratava-se de uma defesa porque, como esclareceu, a proposição tinha sido combatida por um “esteticismo mal compreendido”, que confundia “formalismo e estética” (p. 31). Do seu ponto de vista, tratava-se de um erro, pois, se o formalismo se restringia à “visão dos elementos de fatura como universo autônomo e suficiente”, a estética não podia prescindir do “conhecimento da realidade humana, psíquica e social, que anima as obras e recebe do escritor a forma adequada” (p. 31).



A crítica de rodapé vinha sendo combatida por seu impressionismo e pelos juízos dogmáticos. Candido, porém, considerava as impressões suscitadas pelo texto, isto é, “certos estados de prazer, tristeza, constatação, serenidade, reprovação, simples interesse”, como “preliminares importantes” a serem examinadas e aprofundadas pelo “trabalho construtivo de pesquisa, informação, exegese” (p. 33). Dessa forma, o julgamento a emitir ficaria solidamente fundamentado, “ora com maior recurso à análise formal, ora com atenção mais acurada aos fatores”, sempre em conformidade com o “objeto em foco” (p. 33). Pode-se ver nessas palavras uma defesa do “ecletismo” de que Candido foi acusado e, depois, assumiu como algo próprio de seu método. Coerentemente, expõe adiante, de modo muito franco, o seu ponto de vista: “As orientações formalistas não passam [...], do ponto de vista duma crítica compreensiva, de técnicas parciais de investigação; constituí-las em método explicativo é perigoso e desvirtua os serviços que prestam, quando limitadas ao seu âmbito” (p. 34). O conceito de formalização ou redução estrutural, aprimorado por Candido ao longo do tempo, propiciava a almejada conciliação entre os componentes internos da obra e os seus fatores externos, de natureza pessoal, social e histórica: “Uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para plasmar elementos não literários: impressões, paixões, ideias, fatos, acontecimentos, que são a matéria-prima do ato criador” (p. 34).


Não se pretendeu aqui prolongar extemporaneamente uma polêmica há muito superada, mas apenas recuperar de forma muito breve o “horizonte de expectativas” contra o qual Candido lançou sua obra seminal, procurando justificá-la na “Introdução”. Entre o mestre carioca e o paulista, havia mais concordâncias do que incompatibilidades essenciais. A propósito, cabe lembrar que, no prefácio de seu livro de 1957, Afrânio Coutinho já assinalava que o cunho polêmico por ele impresso ao combate à crítica jornalística tinha sido mal interpretado “como visando à destruição do método histórico e à negação das legítimas relações do fenômeno literário com as demais formas de vida” (p. XII).


 

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ALVARO SANTOS SIMÕES JR. é professor de Literatura da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Assis. Escreveu, entre outras obras, Bilac vivo (Editora Unesp, 2017) e Estudos de literatura e imprensa (Editora Unesp, 2014).


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