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SALA DE AULA | Relato de experiência

por Kelcilene Grácia-Rodrigues

Construir um texto que relate uma experiência, como docente, que tenha me marcado parece fácil, mas não é. Risco aqui; rabisco ali. Passo dias selecionando, dentre os fatos de minha trajetória enquanto estudante e professora, aquele que será narrado. Ao longo de quase 20 vinte anos como professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, quero compartilhar a importância do profissional responsável pelo ensino, aprendizagem e formação do aluno. Aqui, exponho experiências captadas de professores que deixaram seus traços no meu desenvolvimento acadêmico, da fase inicial até a graduação.


Revivo a minha infância e reavivo a minha professora da quarta série. Lembro-me da forma como ela ensinava e, em especial, da dedicação para com seus alunos e para com a profissão que exercia. Hoje, distante no tempo, percebo que aquela professora foi além do ensinar as primeiras letras, irradiou em mim os princípios que me regem como docente: amor, dedicação e respeito à profissão escolhida e aos alunos.


Tornei-me leitora muito menina. Recordo-me das muitas, muitas e muitas vezes que li a coletânea de contos dos Irmãos Grimm, que fora comprada com muito sacrifício pelo meu pai. Ler, reler e “transver” as histórias era a minha brincadeira predileta. Mesmo que lidas tantas vezes, sempre encontrava a magia que emanava das palavras e não se bastavam em si, por isso eu queria ter acesso a outros livros, que me eram impossíveis na época. Nesta ânsia de leitura, comecei a ler os “romances de bancas”: Sabrina, Bianca e Júlia. Só me foi possível lê-los porque minha mãe era leitora assídua deste tipo de livro. Penso que não era a leitura ideal para uma menina de 8 anos, mas era muito prazeroso sair dos contos de fadas e ter acesso a histórias mais reais, mesmo que no final os protagonistas “vivessem felizes para sempre”. E lia, lia, como lia... Até que um dia, novamente, queria algo novo, que me apresentasse o desconhecido e que ampliasse a minha visão de mundo.


Os anos se passaram e comecei a ter acesso a outros livros, tais como os integrantes da coleção Vagalume: O escaravelho do diabo, A ilha perdida, Tonico ; os best-sellers de J. M. Simmel, Sidney Sheldon, Harold Robbins e Agatha Christie; as obras de José de Alencar e Machado de Assis. A paixão pela leitura e, sem me dar conta, naquela época, a sedução da beleza das palavras, culminou em uma escolha feita no Ensino Médio: ser professora de Literatura.


Pesaram sobre mim os aprendizados positivos com minhas professoras, assim como me lançaram a outros mares de experiências negativas durante o Ensino Médio. Não líamos nenhum livro de Literatura, que era ensinada de maneira mecânica: início e término da escola literária, as “características” e os principais autores do movimento. Quanta frustação! Não com a Literatura, é óbvio, mas com a professora. Fiz várias leituras de livros que me foram possíveis e buscava informações para além do conteúdo ministrado por ela. Um dia a professora teve a ideia de montar uma biblioteca de obras literárias na escola. Pensei: Nossa, que ótimo! Só que todos os alunos tinham que contribuir, obrigatoriamente, com um valor “x” mensal para comprar os livros, pois valia ponto na média final. Até aí, tudo bem. Montou-se, devagar, a tal da biblioteca. Só que eram pouquíssimas as produções de escritores da Literatura e em grande quantidade os best-sellers. Não entendia muito a razão da desproporção. O pior viria: não podíamos pegar os livros nem para ler na escola e muito menos levar para casa. Os livros ficavam em uma sala na qual os alunos não tinham acesso. Os meus colegas nem ligavam; eu ficava indignada. Embora considerada como a grande professora de Literatura, o modo como as aulas eram ministradas e como era interposta a distância entre os livros e os leitores nortearam-me sobre que tipo de professora de Literatura que eu não deveria ser.


Profissão escolhida, segui os estudos da graduação em Letras, na UFMS. Tive que cursar as disciplinas da grade curricular, embora só quisesse me dedicar as da área de Literatura. Aprendi muito, em especial com as disciplinas de Linguística (tive um professor muito bom, que exigia muito estudo), de Língua Portuguesa (que maravilha de professora e de aulas que tive! Muitos ensinamentos sobre a estrutura da língua), de Latim (que professora espetacular, até pensei em ser professora de Latim) e as de Literatura: Literatura Portuguesa (professor que nos cobrava a leitura de muitos romances por ano; pena que não focava a poesia) e Literatura Brasileira (aí meu coração explodia de tanta felicidade!). E a Literatura dominava o meu ser!


Na Graduação tive um professor – vou dizer o nome dele: José Batista de Sales – com quem dialogava muito sobre autores e obras da Literatura. Ele me possibilitou, talvez sem saber, ampliar e reforçar os caminhos que eu queria. Com ele, aprendi a ler e a analisar poesia. Adentrei por corixos literários e fui “apresentada” a poesia de Manoel de Barros, poeta objeto de estudo no Mestrado, no Doutorado e sobre o qual até hoje desenvolvo projeto de pesquisa.


Ah, o mais interessante de tudo isso é que aquela professora na quarta série – e vou dizer quem é: Celina Nascimento – e o professor José Sales, hoje aposentados, foram meus colegas de trabalho durante anos no Curso de Letras da UFMS. São as aprendizagens do passado que ecoam em mim e que me movem como docente.


E como docente, tento – espero que eu sempre consiga – trazer para o brilho dos olhos de meus alunos o poder humanizador da Literatura. Cada aula que ministro sempre tem o intuito de mostrar o quanto de beleza há nas palavras arquitetadas pelo escritor, o quanto a Literatura é escrita pelo homem para tratar do homem em todas as suas nuances. Ela é capaz de nos fazer penetrar no âmago do homem, desvendá-lo na sua profundeza, aborda a miséria humana da maneira iluminadora e até redentora, poder que só a Literatura e a Arte possibilitam. Desse modo, em cada olho em que vejo um brilho, sinto-me gratificada. Prossigo caminhando com muitos desses alunos da graduação, que também envolvidos pela beleza da arte literária tornaram-se mestres e doutores, atuando como professores de Literatura em instituições de ensino. Uma certeza me move: também eles poderão abrir portas e janelas para arejar o nosso mundo caduco.


{n. 2 | junho | 2018}

 

Kelcilene Grácia-Rodrigues, doutora em Estudos Literários pela UNESP/Araraquara. É Professora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus de Três Lagoas, atuando no curso de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Letras. Foi coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras (2009-2013) e do Doutorado Interinstitucional (DINTER) em Letras, de 2013 a 2017, entre na UFMS (Instituição Receptora) e a Universidade Presbiteriana Mackenzie (Instituição Promotora). É líder do Grupo de Pesquisa Historiografia literária: recepção, crítica e ensino. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Poesia Brasileira contemporânea. Suas publicações voltam-se principalmente para os seguintes temas: Manoel de Barros, literatura brasileira, teoria literária, poesia brasileira contemporânea, metáfora e literatura de Mato Grosso do Sul. É membro da Rede de Ensino e Pesquisa em Arte, Cultura e Tecnologias Contemporâneas, Rede CO3 (UnB, UFG, UFMT, UFMS, UFU, UFGD). Compõe a Diretoria da ABRALIC (Gestão 2018-2019). Atualmente, realiza Estágio Pós-Doutoral na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal).

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