Mata Doce: apontamentos de leitura
- {voz da literatura}
- 7 de ago.
- 5 min de leitura
Atualizado: 12 de ago.

Durante os meses de maio e junho, o Grupo de Leitura da Voz da Literatura dedicou-se ao romance Mata Doce, de Luciany Aparecida.
Uma narrativa sensível e forte protagonizada pela jovem negra Maria Teresa da Vazante, acompanhada de outros personagens memoráveis: Mané da Gaita, músico e vendedor de doce, e sua cadela Chula; Lai, ex-prostituta e sua madrinha; os gêmeos Cícero e Antônio, filhos do dono da venda; Toni de Maximiliana, vaqueiro matador de gado, filho da sacerdotisa Mãe Maximiliana dos Santos; e Zezito, único filho homem de Luzia, e por quem Maria Teresa se apaixona e planeja se casar. (…) Todos carregam um mundo de histórias de um Brasil profundo entranhado em um vilarejo no interior da Bahia.
Compartilhamos a seguir alguns apontamentos registrados pela Coordenação do Grupo de Leitura ao longo das semanas de leitura.
Semana 1
(…)
A primeira parte de Mata doce revela as façanhas de uma narradora capaz de facilmente colocar o leitor dentro do pequeno povoado de Mata Doce, bem perto do drama e das vidas de Teresa, Mariinha, Tuninha, Mané da Gaita, Chula, Zezito…
As cenas iniciais de Maria Teresa na atividade de abate de bois evidenciam a força dessa personagem e servem como ponto de partida para desenovelar sua história e a tragédia que mudou os rumos de sua existência.
Protagonismo de mulheres negras. Relações homoafetivas. Violência contra mulheres. Religiões e tradições de matriz afro-brasileira. Conflito pela posse da terra…. São temas que perpassam ou estão entranhados na narrativa.
As rosas brancas em homenagem a Yemanjá Sabá, a enfeitarem o peitoril ou a balaustrada da casa, contrastam com a brutalidade de um matadouro e das restrições impostas aos personagens e habitantes de Mata Doce.
Yemanjá Sabá é conhecida também por ser fiandeira. Na tradição ocidental, usamos metaforicamente a imagem mitológica do “fio de Ariadne” para nos referir ao processo de narrativa. Em Mata Doce, podemos dizer que há o “fio de Yemanjá Sabá”.
Semana 2
(…)
A segunda parte de Mata Doce torna mais denso o enredo. O que já era bastante vivo na primeira parte ganha em tensão dramática na segunda.
A morte de Zezito no dia do casamento. A frustração, a revolta e a transformação de Maria Teresa. As possíveis razões para o fazendeiro Gerônimo assassinar Zezito. A tragédia refletida na vida de todos os familiares e na população do povoado de Mata Doce.
A narradora de 92 anos - a própria Maria Teresa - se revela em suas memórias e na montagem da narrativa. Mesmo se revelando pela idade, a narradora não fixa precisamente o tempo histórico dos fatos. Ao leitor, resta presumir esse tempo.
A máquina de datilografia de Teresa, presente de Zezito, permitiu a ela ganhar a vida, batendo cartas para os personagens de Mata Doce. Por aquelas teclas, passam cartas diversas - algumas reproduzidas integralmente nessa parte do romance -, as quais ajudam a montar o quebra-cabeça narrativo. (…)
Semana 3
(…)
A terceira parte de Mata Doce tem o sugestivo título de “Ponto de cruz”. Essa técnica de bordado reflete metaforicamente a própria técnica da narrativa.
Nessa parte do romance, a narradora-personagem Maria Teresa se mostra ainda mais. São recorrentes as menções ao ato de narrar e às recordações que vão sendo “bordadas” no tecido da narrativa.
A carga dramática aumenta não só por conta das novas lembranças associadas à morte de seu noivo Zezito, mas também da história de Josefa (mãe de Angélica e Thadeu), bem como da rememoração sobre as mortes de Tuninha e Mariinha, suas duas mães. O leitor nota como a narradora passa a conviver de forma acentuada com os mortos, as aparições, os sonhos e as visões, num misto entre ficção e realidade.
Chama a atenção, como em dado momento, Teresa crê no potencial da narrativa como vida e de sua força para mudar seus destinos:
“Hoje penso que, se eu tivesse começado a bater essas recordações na máquina com mamãe aqui comigo, a história seria outra. Mas digo isso assim e já tenho vontade de desdizer, porque tudo que venho escrevendo aqui é tanto a voz dela, o jeito dela de narrar o mundo, de contar caso. Mariinha tinha um jeito de encantar que me embelezou.” (…)
Semana 4
(…)
Uma das grandes revelações nesse ponto da narrativa é o fato de Zezito ser filho do coronel Gerônimo Amâncio, seu algoz. É a própria Luzia Sales quem sopra essa verdade no ouvido do coronel Amâncio, o que lhe lança em um estado de loucura e decrepitude.
Essa artimanha do enredo é digna de figurar nas maiores tragédias gregas. Porém, em Medeia (Euripedes) e Agamenon (Ésquilo), o filicídio ocorre em condições diversas, nada igual a de um pai que sequer sabia, pelas tramas do destino, que assassinaria o próprio filho, pois também não tinha conhecimento dessa paternidade.
Essa parte do romance Mata Doce vai no ritmo do desaparecimento. Mais mortes vão sendo narradas. As sombras e os fantasmas do passado continuam transitando pela escrita de Filinha Mata-Boi (ou seria Maria Teresa da Vazante?). Essa dupla identidade, ao mesmo tempo que se escancara, mostra a volta de Maria Teresa à leitura, como na intertextualidade com “Úrsula” (Maria Firmina dos Reis), assim como à escrita, ao recuperar o uso da máquina de escrever.
Esse “retorno” da identidade de Maria Teresa se completa com a epifania do momento em que Lai revela ser sua mãe de sangue.
Agora vamos para as páginas finais de Mata Doce. O que mais esta narrativa nos reserva? (...)
Semana 5
Chegamos ao final da leitura de Mata Doce.
Se na quarta parte do romance, assistimos ao perecimento de uma boa leva de personagens. Na última, acompanhamos o definhar de Filinha Mata-Boi (Maria Teresa da Vazante).
A narradora continua em seu torvelinho de memórias, o que desloca o tempo da narrativa entre passado-presente-futuro, como assinalado no seguinte trecho:
“O tempo era soberano em Mata Doce. Qualquer coisa passava. Mas contra o tempo resistia a memória, e naquele lugar o reinado era dela. Tudo ali favorecia o não esquecimento. A iluminação do amanhecer e do cair da tarde desenhava cenários por onde o tempo deslizava em espiral. Passado, presente e futuro nunca deixavam de se abeirar.(…)” (Pt.5, 1)
Nessa memorabilia, a presença da bibliotecária Belisária e livro Úrsula reforça a formação dessa narradora consciente do valor da palavra, da poesia e da literatura. Sua consciência social e histórica perpassa pelo papel de mulheres negras representadas por ela, Mariinha, Tuninha, Belisária e tantas outras.
A narrativa se dilui ao final com o retrato antigo trazido pela espanhola Fatoumata Rosales (do final da parte III), em que, no jogo de claro e escuro, Maria Teresa se identifica na foto, mas ao mesmo tempo parece pouco a pouco se apagar, como num prenúncio do final de uma existência. Como artefato da memória, o retrato congela um tempo do roseiral em formato de cobra branca, do casarão, do lajedo, das mulheres da Vazante, de Chula…
Ao final, o relato assinado por “Iná Obá - Mãe Carminha” acende a dimensão dos orixás e das forças espirituais presentes na costura e na simbologia da narrativa, acrescentado outras camadas de significação.
Rafael Voigt, editor da Revista Voz da Literatura e Coordenador do Grupo de Leitura.
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