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Lúcio Cardoso | Memorial da Literatura



{ } Na edição de março de 1943 da revista Leitura, encontra-se uma análise crítica de Lúcio Cardoso sobre Frankstein e Drácula. { }





 

Sou um Homem ou um Monstro?

Primeira página da edição de março de 1943 da revista Leitura

O acaso colocou em minhas mãos, nestes últimos dias, dois livros aos quais o cinema garantiu uma repentina e vasta popularidade: "Drácula" de Brahm Stoker e "Frankenstein" de Mary W. Shelley. O primeiro, em tradução francesa, e o segundo, em edição brasileira da Editora Universitária, São Paulo. Ora, confesso que a minha curiosidade pelos dois volumes foi muito grande desde o início, não só porque tenho uma especial predileção pelos livros desse gênero, como pela celebridade de que hoje gozam as duas narrativas. "'Drácula", que vimos no cinema encarnado por Béla Lugosi (creio que foi um dos seus primeiros filmes) consta de um Diário e de algumas cartas, passando-se tudo na Bucovina, onde a lenda garante a existência de um conde com aquele nome e a de outros vampiros suplementares. Estamos aqui em plena atmosfera do terror: carros velhos, cenários em sombra e crepúsculos carregados de bizarros pressentimentos, morcegos gigantes, cemitérios violados, raminhos de arruda para afugentar os maus espíritos, castelos sinistros, enfim, todo o material do horror que o cinema vem estragando sistematicamente há tanto tempo. A narrativa de Brahm Stoker é realmente emocionante, e o terror real, ante a metamorfose que atravessam as vítimas de Drácula.


Artigo de Lúcio Cardoso, p. 23. Revista Leitura, março 1943.

Não sei o que dizer do livro de Mary Shelley. Produto direto do romantismo alemão, este romantismo que inundou a Europa e o mundo inteiro com três enormes vagas de poetas, videntes, santos, farsantes e romancistas fantásticos, a própria autora não nos esconde origem da sua ficção. "Frankenstein" é um neto de Hoffmann,

Achin von Arnin ou Ludwig Tieck [1]. Tudo nele foi criado para transportar o leitor a um mundo próprio, diferente deste em que vivemos, povoado por autênticos duendes. Ora, primeiro erro a meu ver, pois um dos grandes interesses do romance fantástico é a semelhança com o nosso próprio mundo. Mas Mary Shelley, apesar de ser esposa de um grande poeta, esqueceu de transmitir ao seu

livro esse sopro de poesia que varre por exemplo as

tremendas histórias de Arnin. Não há em "Frankenstein" o que é tão comum ao autor de "Herdeiros do Majorado" [2], isto é, esta fusão de planos, essa aparência de loucura que faz um homem são olhar pela janela e ver um baile de mortos na casa vizinha.


Artigo de Lúcio Cardoso, p. 35. Revista Leitura, março 1943.

No livro de Mary Shelley tudo é seco e medido, pelo menos no que se refere à parte sobrenatural. Porque, quanto ao resto, não há medida de espécie alguma. O romance parece ter sido feito com acréscimos, a última parte em primeiro lugar, as primeiras em último, etc. Não se sabe bem qual é o processo que dá nascimento ao monstro, que é uma espécie de coisa saída de repente do nada, sem as retortas, sem os tubos e geradores, que no cinema conduz vida ao corpo inanimado do gigante.

Qual é a origem de "Frankenstein"? É a própria Mary Shelley quem nos conta como nasceu o livro. Estavam em certa noite de inverno, ela, o marido e... Lord Byron. Como o tédio fosse grande e a noite ainda maior, apostaram quem escreveria mais depressa uma história fantástica. Segundo a própria autora, estavam todos impregnados de narrativas alemãs. Puseram-se a escrever, mas só Mary Shelley levou a obra a termo, pois Shelley abandonou-a em caminho e Byron converteu-a nalguns cantos do "Childe Harold". "Frankeinstein" nasceu assim quase por acaso e, é justo dizer que a sua fama começou

imediatamente, graças ao prefácio elaborado por Shelley e à enorme aceitação que na época tinham os romances do gênero.

Em tão ilustre companhia, seria de esperar que a obra saísse com qualquer centelha genial. Mas não: temos apenas um livro pretensioso, inferior até mesmo aos romances negros de Anna Radcliffe [3], eivado pelos males do pior romantismo, isto é, aquele inconcebível furor de descrever paisagens, cascatas, neves, montanhas, lagos e todo o acessório que tornou a escola quase proibida para

nós. Que Byron descrevesse estas coisas, está bem, ele o sabia melhor do que ninguém neste mundo e não era atòa que encarnava de tão magnificente maneira o espírito do romantismo. Mas em Mary Shelley temos uma penosa impressão de morosidade tempo perdido, de estilo difícil e tortuoso! As descrições se amontoam completamente inúteis, os personagens mal aparecem sob esta avalanche

descritiva, tudo é difícil e mal arranjado. A autora devia colher informações com Hans Heinz Ewers [4], que escreveu "Mandrágora"', "Estudante de Praga" e outras exposições de horrores.

Resta a idéia. Poderá haver nada de mais artificial do que esse monstro feito de restos humanos? E além do mais, que aparece falando em Milton, com tiradas filosóficas, etc... Um monstro absoluto, tal como Frankestein deveria ser, não se deteria em plena tempestade para indagar: "Amo, respiro, sofro. Entretanto, sou homem ou monstro?" Isto só acontece em Shakespeare.

Bem pesados os dois livros, regresso ao "Drácula". Neste, há qualquer coisa que não se afasta da terra e mergulha ao mesmo tempo nos negros mistérios que mal ousamos sonhar. Neste, há um cenário sem descrições, há almas que padecem, há seres que se transformam, há um demônio que se agita e causa vertigem aos homens. Neste existe a noite e mais do que a noite, existe a morte. Só ela é fantástica e grande, só ela é responsável por todos esses fantasmas que a terra não pôde guardar no seu seio. Isto não pertence só aos romances de pura fantasia, mas a outra coisa mais, a alguma coisa que sempre faz vibrar nos homens uma corda secreta e misteriosa.


 

Notas

[1] Ludwig Tieck (1773-1853), poeta, romancista e editor alemão.

[2] Refere-se ao romance do escritor alemão Achin von Arnin (1781-1831).

[3] Anna Radclife (1764-1823), escritora inglesa, precursora do romance gótico.

[4] Hans Heinz Ewers (1871-1943), ator e escritor alemão, conhecido por suas histórias de horror.

 

Fonte

REVISTA LEITURA [RJ, 1942-1968]. Ano 1943, Edição 004, p.23 e 35. Disponível na Hemeroteca Digital Brasileira, Fundação Biblioteca Nacional.

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Todos os direitos reservados aos herdeiros de Lúcio Cardoso.

 

Projeto Memorial da Literatura. Revista Voz da Literatura. Maio de 2023. Notas, transcrição e revisão: Rafael Voigt Leandro.


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