top of page

Lúcia Miguel Pereira | Memorial da Literatura

Atualizado: 30 de dez. de 2023


{ } A escritora e crítica literária Lúcia Miguel Pereira (1901-1959) produziu valorosa bibliografia para os estudos da história da literatura brasileira. Entre outros livros, destaca-se Prosa de ficção (de 1879 a 1920). Lúcia Miguel Pereira participou da plêiade de intelectuais que colaborou com um dos mais notáveis cadernos de cultura da história da imprensa brasileira: o Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo. No ensaio “Uma heroína contraditória”, publicada na edição de 9 de fevereiro de 1957, Lúcia Miguel Pereira explora a controversa biografia de uma heroína brasileira nascida no final do século XVII: Rosa Maria de Siqueira. Esta personalidade aparece na obra “Teatro heroíno: abcedario histórico, e catalogo das Mulheres Illustres em Armas, Letras, Acçoens heróicas, e Artes liberaes” (1740), de Damião de Froes Perim (Frei João de São Pedro), uma das fontes consultadas e comentadas por Lúcia Miguel. { }


 

Uma heroína contraditória


Primeira Página do Suplemento Literário, 9 de fevereiro de 1957

Talvez por horror irredutível a toda forma de violência, nunca pude admirar as heroínas guerreiras, que abrem mão de um dos poucos privilégios pela sociedade concedidos às mulheres em troca de tantas restrições - o de não serem, sob pretexto algum, obrigadas a matar. Sempre me pareceu que Maria Quitéria, Anita Garibaldi e suas êmulas melhor fariam se não se metessem em tropelias armadas e de outro modo manifestassem o seu patriotismo.

Uma há contudo cuja valentia, reclamada pelas circunstâncias, tem uns toques românticos, uma graça poética que lhe tornam gentil a figura. Chamou-se Rosa Maria de Siqueira e nasceu em São Paulo nos fins do século dezessete, pertencendo, segundo as notícias, a gente de prol.

Casada com o desembargador Antonio da Cunha Souto Maior, com o marido embarcou, apenas celebradas as bodas, para Portugal, na nau "Senhora do Carmo e Santo Elias", que levava para o reino, além de açúcar, tabaco e couro, 119 passageiros, entre os quais o último governador das Minas. Nem a dupla proteção da Mãe de Cristo e do profeta, nem a importância do desembargador e do governador valeram à embarcação que, já prestes a alcançar Lisboa, teve triste encontro. Amanhecia quando ao longe se avistaram três velas, evidentemente de má catadura, pois logo identificadas como pertencentes a navios corsários argelinos. O comandante dispôs tudo para o combate, mas que poderia uma pacata nau mercante contra façanhudos mouros, bem providos de bocas de fogo? Acrescia ainda que havia a bordo quem desanimasse os defensores, tachando de absurda e inútil qualquer resistência; alguns judeus que iam presos para o tribunal do Santo Ofício, e preferiam, porventura justamente, o cativeiro dos cárceres da Inquisição. Quem com eles argumentou, não lhes consentindo arrefecer a coragem dos demais, não foi nem o governador nem o desembargador, mas a jovem esposa deste, que ao grito - Viva a fé em Cristo! - incitava à luta todos os homens.

O combate, muito duro, se prolongou por dois dias, entremeados por uma noite de vigília, aproveitada para amortalhar os mortos, pensar os feridos, reparar as naus e fabricar cartuchos. Durante tantas horas de aflição, nas quais por cinco vezes foi tentada pelos muçulmanos a abordagem da nau, a presença de Rosa se multiplicou, meiga e consoladora junto dos que sofriam, diligente e hábil junto das outras poucas mulheres, a quem ensinava a preparar a munição, audaz e destemerosa no convés atroaste de balas, onde combatia como um soldado aguerrido, sempre no lugar maior risco. Caindo morto, a seu lado, um artilheiro, ei-la a substituí-lo, manejando o canhão como se outra coisa nunca houvesse feito. Quando uma granada ateia fogo à vela principal, não vacila, mais atenta ao perigo do que ao feminino pudor, em despir a túnica militar, pela qual trocará os faceiros vestidos, para abafar o começo de incêndio que seria fatal.

Afinal, após nova noite de cuidados, a madrugada trouxe a visão alvissareira dos navios corsários a sumirem no horizonte, e a nau pôde rumar para Lisboa.

Não diz o cronista dos feitos da heroína qual a sua vida posterior, se em Portugal ficou, se volveu ao Brasil. É porém mais provável que lá morresse, sem rever a nativa São Paulo, deixada após um escândalo no qual teve conduta tão oposta a da marítima aventura que custa a crer fosse de ambas capaz a mesma criatura. Assevera que o foi um genealogista, por dever de ofício obrigado a estabelecer seguras identidades. O caso é que, segundo um velho documento, a corajosa jovem, tão destemida nas lides armadas, tímida e indefesa se mostrar pouco antes, vítima da violência do mesmo desembargador, depois seu marido, ao contrário tão omisso nas pelejas como empreendedor na conquista do objeto de sua cobiça. Dir-se-ia que, com o casamento, trocaram de personalidade, ganhando ela a agressividade do homem que a submetera na justa amorosa, adquirindo ele a passividade da mulher que dominara.

Numa “Notícia da descendência de Amador Bueno da Ribeira", lê-se, a respeito de Francisco Bueno Luís da Fonseca, neto do paulista que não quis ser rei: "Foi o cabeça da expulsão do desembargador sindicante Antonio da Cunha que se achava em São Paulo. Deu motivo para este atentado que teve efeito no dia 28 de outubro de 1712 a paixão de honra ofendida na defloração da menina Rosa Luís, com quem se casou logo depois no Rio de Janeiro o mesmo ministro. Ela é a heroína de quem fala com o nome de D. Rosa Maria de Siqueira Damião de Froes Perim no seu Teatro Heroíno. No Teatro Heroíno, o que há é a descrição da luta com os corsários e o elogio da bravura de Rosa. Note-se que o ataque argelino se verificou a 20 de março de 1714, cerca de ano e meio depois de ter sido Souto Maior corrido de São Paulo, como culpado da violação da moça a quem bastou esse curto lapso para transformar-se de menina imbebe em heroína belicosa, e que, nascida em 1690, ela contava vinte e dois anos quando a desrespeitou o magistrado.

A ser tudo verdade, triste figura faz esse desembargador, audaz junto de donzelas, esquivo diante do inimigo. Talvez, porém, dos documentos que lhe narram as aventuras e desventuras, publicados pelo historiador Afonso de E. Taunay nos Anais do Museu Paulista, ressalte, quando lidos nas entrelinhas, uma visão um pouco diferente de sua atuação em São Paulo. Tudo começa por uma fato que se diria atual: o monopólio de uma mercadoria determinando sua escassez artificial e seu real encarecimento. Os paulistas de começos do século XVIII chegavam a pagar vinte mil réis, quantia despropositada para a época, pelo alqueire de sal, cujo preço marcado fora 1$280. Irritado com a exploração, um potentado, Bartolomeu Fernandes de Faria, invadiu, à frente de um bando de caboclos e índios a seu serviço, os armazéns de Santos, deles retirando, pelo preço estipulado, todo o sal. Parece todavia que essa proeza, em si mesma bem-vinda, teve a contrabalançá-la as crueldades e mortes de que seria useiro Bartolomeu. Aqui é que surge, desembargador-sindicante encarregado de apurar o crime, o nosso Souto Maior, que se jactava de prender o valentão.

Mas não era somente essa a sua missão; competia-lhe também abrir devassa sobre desvios de quintos de ouro e sobre a existência de uma quadrilha de moedeiros falsos. Acontece, porém, que o chefe indigitado desta, um certo Francisco Jorge, morador em Parnaíba, sobrelevava ainda, em força e prestígio, o saqueador de Santos. Embora afrontado tão poderosos adversários, não se acovardou o magistrado, que iniciou diligências rigorosas em Parnaíba, exigindo o comparecimento à sua presença de Francisco Jorge. Mas não se submetiam assim facilmente os paulistas à autoridade reinol, e o movimento contra a sindicância foi encabeçado pelo homem mais rico e de maior prestígio de seu tempo, financiador dos bandeirantes e protetor dos jesuítas, o padre Guilherme Pompeu de Almeida, sendo Souto Maior expulso da vila. Mudado à força para a cidade de São Paulo, tenta aí continuar os seus trabalhos, surge então a acusação de haver violentado uma menina, em motim chefiado pro um neto de Amador Bueno, pessoa também das mais graduadas do lugar, o desembargador só escapa de ser assassinado porque consegue fugir para o Rio.

De que, não obstante a gravidade de sua situação, achara Souto Maior disponibilidade para cuidar de amores com Rosa, não deixa dúvida o seu casamento, efetuado logo depois, devendo a moça, se não o acompanhou na fuga, tê-lo imediatamente seguido. Mas, diante dos interesses de gente tão protegida, ameaçados pela sua ação, da natural soberba dos paulistas que não toleravam intromissões lusas em sua terra, é permitido pensar hoje haja sido um mero pretexto a "honra ofendida" de que fala o cronista. Também de Parnaíba se viu corrido, embora não conste que lá haja desrespeitado menina alguma. E, mais do que tudo, a atitude posterior de Rosa indica que não se deixaria possuir por violência; ou que, se acaso não pudesse resistir, não se casaria com quem tanto a humilhara. Ter-se-ia entregue voluntariamente, dona de si e de seu corpo que certamente se sentiria? Ou, com o futuro marido, teria sido alvo de uma calúnia que justificaria a expulsão deste.

As duas hipóteses parecem muito mais prováveis do que a versão do anônimo genealogistas o qual, para ser mais convincente, aponta-a como uma menina, quando já contava vinte e dois anos, sendo portanto, para época, quase uma solteirona. E sobretudo se ajustam mais a outra face que dela conhecemos; afinal, pouco nos importa que haja ou não cedido, antes do casamento, ao seu desembargador, se vão legitimando estas indagações para recompor-lhe a figura e tão estranhamente dividida em metade de vítima e metade de heroína.

 

Fonte: SUPLEMENTO LITERÁRIO DO ESTADO DE SÃO PAULO [SP, 1955-1967]. Ano 1957, Edição 018, p. 2. Disponível na Hemeroteca Digital Brasileira, Fundação Biblioteca Nacional.

 

Todos os direitos reservados aos herdeiros de Lúcia Miguel Pereira.

 

Projeto Memorial da Literatura. Revista Voz da Literatura. Dezembro de 2022. Notas e transcrição: Rafael Voigt Leandro


2 comentários

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page