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Folheto #8 Horácio

De volta à Roma Antiga, mas em franco diálogo com a poesia de diferentes épocas. É nossa matéria especial sobre as Odes de Horácio. E na seção Folhetim: um conto do novo livro de Thássio Ferreira.

Aproveite o Folheto nº8 da Voz da Literatura.





Quinto Horácio Flaco. Ou simplesmente: Horácio (65 a.C.-8 a.C.). Entrou para a história da literatura como um dos maiores poetas da Roma Antiga.


É controversa sua ascensão social. Conta-se que foi filho de ex-escravo. O que parece não explicar muito bem o fato de ter tão rapidamente se metido no círculo de poderosos romanos.


Ao conhecer Virgílio, outro poeta romano, é levado ao convívio de Mecenas, que acaba por lhe subsidiar financeiramente sua vida artística.


Aos vinte anos excursionou pela Grécia. Não por acaso sua lírica reflete o desejo de se igualar a poetas gregos como Píndaro, Alceu e Safo. Pretendia seguir modelos líricos e musicais da época de Alceu.


É por sua expressão lírico-musical que a posteridade relacionou Horário e suas “carmina” ao termo grego “odes”, cantadas pelos aedos.


CARMINA: AS ODES DE HORÁCIO



Em 2021, a editora 34 lançou a edição bilíngue das Odes, de Horácio, com tradução, introdução e notas de Pedro Braga Falcão, doutor em estudos clássicos pela Universidade de Lisboa e professor na Universidade Católica de Lisboa.


É uma novidade bibliográfica que lança luz sobre a obra de Horácio, com os estudos que o tradutor Pedro Falcão oferece aos leitores.

São vários os temas a que se dedica Horácio em suas odes (carmina). Canta o ofício do poeta, o carpe diem, a morte, o amor e, claro, a história de Roma nos tempos de Augusto.

(...) carpe diem, quam minimum credula postero/colhe cada dia, confiando o menos possível no amanhã (I, 11, 8). É provavelmente um dos versos mais conhecidos de Horácio. Tantas vezes citado fora de contexto, os oito versos dessa ode, no diálogo do eu-lírico com Leucônoe, tratam do tempo, de impermanência, esperança, sensatez, vida e morte.


O tradutor Pedro Braga Falcão se encarrega de anotar o quão horaciano é Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, quando verseja: “[...] no mesmo hausto/Em que vivemos, morremos. Colhe/O dia, porque és ele”.


Um dos aspectos da obra horaciana é a menção a dados (supostamente) biográficos. O “ego” aparece com frequência em seus escritor (epodos, odes, sátiras e epístolas). Porém é preciso cautela nas vinculações entre o ego-lírico e a vida real de Horácio. É o que também nos alerta o tradutor Pedro Falcão.


Entre vida e poesia, uma coisa é certa. A política esteve no cerne da trajetória literária de Horácio. Apoiou Bruto e Cássio no afamado episódio do assassinato de Júlio César. E louvou os feitos de Otaviano - depois chamado “Augusto”, como em “Pai e Guardião da espécie humana,/ ó filho de Saturno, os fados te deram a missão/de proteger o grande César; que reines tu,/ e César em segundo lugar.” (I, 12, 49-52).


De Petrarca a Bertolt Brecht, a poesia horaciana sedimentou-se atráves dos tempos e das tradições do Ocidente. Por essa razão, cabem mais alguns versos de Horácio, em diálogo com outro poeta, versos de uma ode dirigida a Virgílio:


[...]

Vá, não te atrases, e deixa de ter amor ao lucro,]

lembra-te das chamas negras da morte, e tempera,]

enquanto é tempo, a tua prudência com uma breve loucura:]

na ocasião certa é doce perder o juízo


FOLHETIM ::: NUNCA ESTIVEMOS NO KANSAS


Thássio Ferreira é poeta e ficcionista, publicou os livros de poesia (DES)NU(DO) (2016), Itinerários (2018) e agora (depois) (2019). Escreve a coluna Alguma coisa em mim que eu não entendo na Revista Vício Velho. Está lançando o livro de contos Nunca estivemos no Kansas (Ed. Patuá).



Apatia


Aquela apatia, há tanto tempo. Sempre, talvez? A mãe não lembra, acha que não. Uma criança normal. Quieta (talvez)? Ela não lembra, tantos afazeres, e os irmãos, o egoísmo, o massacre dos dias, filho cresce, pra que lembrar se há fotos, aniversários, novela na tevê, o salão toda semana, brinquedos no natal, algum futuro? Mas ultimamente: demais. Chega.


Dia qualquer. Aconteceu algo? A mãe não lembra. O jovem de cabeça baixa, o corpo mole, sem vida, como se tivessem desligado todas as suas terminações nervosas, e agora apenas: oco. Exaspera-se. Ríspida, num repente, feito cusparada:


— O que você quer?

— Um câncer.


Primeiro a boca entreabre uma fresta, da espessura necessária apenas para se dizer que abriu, antes dos olhos arregalarem: o pasmo. Quase imperceptível. Se a toda ação corresponde uma reação em sentido inverso e de igual intensidade, jamais se conseguiu medir o intervalo (infinitesimal) de instante entre ação e reação. Todavia existe: o pasmo. A matéria boquiaberta, de lábios fissurados. E logo a cólera (a matéria reagindo):


— Que besteira é essa? O que você tá dizendo? Um câncer?! — Olhos arregalados não mais em espanto, mas em raiva. Saliva acre fermentando a língua — Hein?! Que isso de câncer, que isso? Fala! Fala! — jorro encachoeirando-se incontido contra a sequidão do outro, respingando sobre gestos encrespados, tromba d´água de palavras.


Palavras: para tentar entender. O outro: deserto sem nem vento, rosto inexprimindo coisa nenhuma, granulando ausência.


Ela respira pesadamente, quase a tremer, como se fosse nela que células se multiplicassem vertiginosas, feito antes, há tanto tempo... comprimindo seu caroço de mãe. Vai dizer algo mais, talvez muitas coisas mais. Talvez levantar-lhe a mão.


Cansado, tanto. Tão jovem e tão exaurido. De? Quem sabe. Mas ainda lúcido: o desejo de um câncer não é a verdade de um tapa.


— É a única coisa certa de me tirar desse tédio.


Como?! Os natais, os presentes, a tevê!! A raiva reencharcando-se de espanto, um bombear de fluxos mais rápido e errático que sua narrativa possível:


— Tédio?! Tá doido?!?! Um câncer pra sair do tédio, você tem noção? Você... — Ela se contrai toda, até o colo do útero — O que é isso, que palhaçada é essa?! Vai à praia, vai jogar bola, vai beijar na boca!

— Não, mãe. Isso tudo ainda é o tédio. Você não entende.


Mães nunca entendem, segundo os filhos. O que é verdade, mas: é a escolha de um recorte da verdade. Ninguém nunca entende ninguém (de verdade). Filhas, filhos também não. E um câncer. Desejos são especialmente difíceis de ser entendidos. Ademais: afazeres, egoísmo, o massacre dos dias, muitos dias, novela, salão, talvez fosse tarde ou, no caso dela, apenas ainda mais impossível tentar entender: Um câncer! Logo um câncer!?! — pensa engasgada.


Ela acredita que tentou. Que há de ser para o bem. Ou nem acredita em mais nada, apenas reagindo em sua matéria de mãe e medo e incompreensões, essa matéria tão única e tão compartilhada que mede aquelas palavras como: uma agressão. Ação e reação. Ele esperava que dizendo, dizendo qualquer coisa, escaparia à verdade, bastava recorrer às palavras, invocar, obedecer, engordar esse pacto imemorial entre nós e a linguagem. Tanto a aprender ainda.


Para além das palavras, para além de tentar ou mesmo ser capaz de entender (nossa matéria tão limitada): (as palavras nunca chegam a dar conta da verdade e) o tapa vem.



 

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