Usos políticos da figura de Olavo Bilac
- {voz da literatura}
- 12 de ago.
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Patricia Santos Hansen
(CHAM, Nova FCSH-UAc)
Olavo Bilac (1865-1918) foi talvez a personalidade da Primeira República cuja imagem mais se prestou a apropriações por agentes posicionados em diferentes quadrantes do espectro político e ideológico brasileiro durante o século XX.
O seu multifacetado perfil intelectual ofereceu ingredientes para liberais, democratas e autoritários, que selecionaram, ressignificaram e apagaram traços das múltiplas identidades assumidas por Bilac em sua vida. Foi lembrado como poeta, boêmio, autor de livros para crianças, jornalista assíduo em alguns dos principais órgãos de comunicação da capital, por seu engajamento em causas sociais como a Abolição, a instrução primária obrigatória, a reforma urbana, o saneamento básico e, finalmente, como porta-voz das campanhas cívicas e patrióticas de diferentes ligas, em particular da causa do serviço militar obrigatório.
Nas diversas biografias e perfis publicados ao longo do século, contrastam-se as imagens do patriota sério de oratória potente e do poeta parnasiano com as do boêmio sarcástico e do cronista irônico e opinativo. Bilac foi isso tudo e mais.

É possível afirmar que coexistem diferentes memórias de Bilac e que estas variam de acordo com os rastros de sua passagem por diferentes regiões do país, com os distintos meios de contato com a trajetória e a obra de Bilac - em contexto escolar, no serviço militar, por acesso aos seus livros, e outros -, e que os enquadramentos políticos dessas imagens durante regimes autoritários também afetaram de modo diverso a memória guardada por gerações de brasileiros.
Um “acontecimento biográfico”, para usar o termo de Pierre Bourdieu, ocorrido já na maturidade de Bilac, foi o que deu o tom para os principais usos políticos de sua imagem, apropriada e difundida pelas Forças Armadas e seus agentes a partir de 1939 e retomada nos anos da ditadura militar. O acontecimento, ocorrido a 9 de outubro de 1915, foi um discurso proferido na Faculdade de Direito de São Paulo, ao qual foi atribuído o efeito de despertar o sentimento patriótico entre segmentos letrados e formadores de opinião e de provocar uma quase imediata mobilização cívica. O discurso é apontado como uma espécie de ato fundador de duas ligas cívicas logo no ano seguinte: a Liga da Defesa Nacional, sediada no Rio de Janeiro, e a Liga Nacionalista de São Paulo.
Bilac manteve diferentes relações com cada uma delas. Da Liga da Defesa Nacional, ele foi secretário geral e o principal porta-voz, representando-a pelo país. Da Liga Nacionalista, foi presidente honorário, uma distinção sem o compromisso de um cargo propriamente dito.

Em 1915, Bilac já desfrutava de uma fama invulgar para os padrões da época, mas é possível dizer que até aquele ano o capital simbólico de sua imagem pública associava-se principalmente à poesia e à crônica. Foi em seus últimos três anos de vida que a imagem de patriota e propagandista do serviço militar obrigatório se sobrepôs a do homem de letras, reforçada pelo contexto de uma guerra mundial que demandava atenção do país para o problema da defesa. Sua morte, quase coincidente com o final da Primeira Guerra, permitiu que futuramente essa imagem fosse cristalizada por interesses diversos.
A Liga Nacionalista foi a primeira a mobilizar recursos para homenagear seu presidente honorário, e aquela cujo programa acabou por ser o mais dissociado da imagem póstuma de Bilac. No ano seguinte à morte de seu presidente honorário, a liga mobilizou apoiantes para financiar a construção de um monumento em sua homenagem, instalado na Avenida Paulista e inaugurado em meio às comemorações do Centenário da Independência em 1922. Consistia em um grande conjunto escultórico confeccionado pelo artista William Zadig e composto por cinco peças de bronze. A figura de Bilac em uma tribuna, referência ao discurso na Faculdade de Direito, era a peça de maior dimensão e ficava no centro. Ao redor, quatro peças representavam os poemas “A tarde”, “O caçador de esmeraldas”, “O beijo eterno” e “Pátria e família”. Uma fotografia publicada no número especial da revista A Cigarra dedicado às festividades do Centenário em São Paulo, mostra a multidão presente à inauguração do monumento[1]. Nada do que foi feito na Capital Federal até o final da década de 1930 para celebrar a memória de Bilac se compara à homenagem da Liga Nacionalista.

Capitalizando o sucesso do evento, semanas depois a Liga Nacionalista apresentou ao poder legislativo do Estado de São Paulo uma representação, solicitando medidas que colocassem efetivamente em prática o regime instituído na Constituição, visando principalmente a instituição de práticas que garantissem efetivamente o voto secreto e obrigatório, impedissem as fraudes e a corrupção eleitoral.[2] A Guerra havia terminado e a obrigatoriedade do serviço militar não era exatamente uma bandeira da Liga Nacionalista que acabou por ser extinta em 1924, devido a suspeitas de envolvimento no levante liderado por Isidoro Dias Lopes.
O monumento sobreviveu pouco mais de uma década. Em fevereiro de 1935, o jornal A Gazeta anunciou a sua retirada apresentando considerações que sugerem a existência de oposições à obra quase que desde a sua inauguração.[3]
Ao longo dos vinte anos após sua morte Olavo Bilac foi lembrado de diferentes formas, poucas destacavam a campanha cívica. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, porém, ministros militares do governo Vargas ressuscitaram a imagem do patriota defensor do alistamento obrigatório e a adaptaram ao programa do regime que buscava forjar uma identidade nacional unificadora e mobilizar a juventude em apoio ao projeto autoritário do Estado. O ano de 1939 marcou uma importante inflexão na imagem de Bilac que até então havia sido forjada principalmente por instituições e indivíduos aos quais esteve associado em vida. O Decreto-lei n. 1.908 de 26 de dezembro, assinado pelo presidente Getulio Vargas e pelos ministros da Guerra de da Marinha, projetava-o nacionalmente como herói, transformando sua data de nascimento, 16 de dezembro, em Dia do Reservista, “com a finalidade de reavivar o espírito militar dos reservistas do Exército ou da Armada”. A imagem de Bilac ficava assim associada oficialmente a um governo autoritário.[4]
Durante o mês de dezembro de 1939, a Comissão Nacional de Homenagem à Memória de Bilac, encabeçada por Eurico Gaspar Dutra, então ministro da guerra, organizou uma série de eventos, com larga divulgação e cobertura nos periódicos. Segundo registros da imprensa, numerosas celebrações de Bilac, espontâneas e até oportunistas, não previstas pela agenda da Comissão, foram realizadas na capital e em várias outras cidades do país. O interventor Adhemar de Barros em São Paulo, por exemplo, inaugurou uma placa de bronze na Faculdade de Direito com a seguinte inscrição: “A Olavo Bilac, no momento em que a Pátria começa a colher os frutos das sementes que ele plantou nesta Faculdade, O Governo do Estado de São Paulo, São Paulo, XX-VII-XII-MCMXXXIX”. Uma iniciativa que, pode-se dizer, reivindicava a primazia paulista para esta nova narrativa da memória de Bilac que se integrava à memória nacional.[5]
O enquadramento oficial da memória de Bilac, porém, disputava com outros recortes e narrativas que ressaltavam aspectos da vida do intelectual não relacionados ao seu patriotismo. A boêmia, os versos eróticos e satíricos, o noivado desfeito, entre outros temas, foram abordados em artigos de jornais e revistas e em livros publicados durante as décadas de 1940 e 1950.[6]
Em 1964, com a instauração do regime militar, uma série de medidas teriam como resultado a transformação da memória de Bilac em uma narrativa monotemática. Títulos de livros sobre o autor naquele período expressam as operações de valorização do binômio “poeta parnasiano e patriota defensor do serviço militar”, em detrimento de outras identidades: Olavo Bilac e o serviço militar obrigatório, o homem, o artista, o patriota (1969); Olavo Bilac, o homem cívico (1968); Bilac e o serviço militar (1966); Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, príncipe dos poetas brasileiros, patrono do serviço militar (1974). Em paralelo, contrastando com as décadas anteriores, a imprensa pouco publicou sobre Bilac. Um silêncio que pode sugerir resistência aos usos políticos da imagem de Bilac pela Ditadura ou censura.
Com a aproximação da efeméride do centenário do nascimento de Bilac, os militares em busca de legitimidade, aprovação e colaboração da sociedade civil, viram na figura de Bilac o potencial para construção de um ícone, capaz de simbolizar uma conciliação em prol da pátria, desde que sua juventude boêmia e seus escritos eróticos e satíricos fossem esquecidos. As reações indignadas de membros da Academia Brasileira de Letras a respeito da biografia Vida e Poesia e Olavo Bilac de Fernando Jorge (1963), que segundo o autor tiveram o resultado de transformar o livro em um Best-seller, são emblemáticas desse momento e mostram, além do esforço de apagamento, a afinidade entre acadêmicos e militares no que diz respeito às representações do cânone literário que, mais do que a obra, deviam ter em conta a vida daqueles que o integravam.[7]

No ano seguinte ao Golpe, foi instituída uma comissão para organizar as solenidades comemorativas do centenário de nascimento de Olavo Bilac, “autor da letra do Hino à Bandeira, propugnador do serviço militar obrigatório e grande incrementador do sentimento do civismo, que deve ser incutido na juventude [...] CONSIDERANDO que o sentimento do dever cívico se inspira nos grandes momentos em que a Pátria tem a oportunidade de rememorar os seus vultos maiores, avivando-lhes os feitos na memória dos contemporâneos e retirando nos exemplos do passado também a lição para as gerações mais novas, [...]”.[8]
A comissão era formada por autoridades do governo e os presidentes da Liga da Defesa Nacional e da Academia Brasileira de Letras. Entre as atividades destacou-se a publicação do livro A Defesa Nacional, uma reunião dos discursos de Bilac durante sua campanha cívica, publicado em 1917 e sem outra edição até aquele momento. A edição da Comissão de Comemoração do I Centenário de Nascimento de Olavo Bilac, consistia na coletânea dos discursos proferidos entre 1915 e 1917, apresentados em ordem cronológica, com acréscimo de uma “Apresentação”, assinada pelos membros da Comissão, e do texto “O que significa este livro”, assinado por Carlos Maul, que expressava a direção a ser tomada no enquadramento da memória de Bilac sob a ditadura. Para isso, o autor utilizou engenhosamente termos e associações semânticas próprias aos discursos em defesa do golpe e do regime, completamente estranhos aos discursos de Bilac.[9]
O processo de heroificação de Bilac foi consolidado com um outro decreto, em 19 de abril de 1966, que o nomeava patrono do serviço militar, tornando-o o primeiro civil a receber a honraria de se tornar um patrono das Forças Armadas. De acordo com o texto do decreto, assinado pelo general e presidente Castello Branco e pelos ministros da Marinha e da Guerra, a escolha era baseada nas seguintes considerações: “que Olavo Bilac foi o grande propugnador do Serviço Militar obrigatório, em favor de cuja adoção emprendeu uma campanha de âmbito nacional nos anos de 1915 e 1916”; “que seus poemas, a letra do Hino da Bandeira e seus discursos vibrantes, constituem, o catecismo cívico da juventude brasileira”; e “que o sentimento do dever cívico se inspira nos momentos em que a Pátria tem a oportunidade de rememorar os seus vultos maiores, buscando em suas atitudes exemplos para as novas gerações”.[10]
Em retrospecto, é justo observar que Olavo Bilac em vida nunca deixou de sublinhar sua posição de que a universalidade do serviço militar era condição de cidadania, democracia e obstáculo à intervenção política das “classes militares”. Não deixa de ser irônico, portanto, que tenha se tornado um herói sob a ditadura militar.
*Patricia Santos Hansen é Investigadora Principal no Centro de Humanidades (CHAM), FCSH, Universidade Nova de Lisboa e Professora Colaboradora do PPGHIS da Universidade Federal de Juiz de Fora. Possui graduação e mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Realizou pós-doutorado no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) e na Fundação Casa de Rui Barbosa. Foi Marie Curie Fellow no Instituto de Educação da e investigadora visitante no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa.
NOTAS
[1] ASPECTO da Inauguração do Monumento ao Grande Poeta Nacionalista Olavo Bilac, na Avenida Paulista, em 7 de setembro Último. A Cigarra, ano X, n.193, 1922. Disponível em < https://memoria.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=003085&pagfis=5291 >. 2/08/2025.
[2] LIGA NACIONALISTA. Representação. 1922. Disponível em <http://goo.gl/2MBdqS>. 17 abr. 2014.
[3] NOTÍCIA sobre a Retirada do Monumento à Olavo Bilac. A Gazeta, São Paulo, 2 jul. 1935.
[4] DECRETO-LEI n. 1.908, 1939. Disponível em <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-1908-26-dezembro-1939-411874-publicacaooriginal-1-pe.html >. 31/07/2025.
[5] HOMENAGENS à Memória de Olavo Bilac. Folha da Manhã, São Paulo, 27 de dezembro de 1939, Arquivo da Folha de São Paulo.
[6] Multiplicam-se nesse período títulos como: “Bilac viveu ou imaginou o seu erotismo?” (1941); “Episódios inéditos e pitorescos na vida de Bilac” (1941); “A noiva de Bilac” (1943); A vida exuberante de Olavo Bilac (1944) e Olavo Bilac — bom humor (s.d.) de Elói Pontes; “Os poetas Bilac, Alberto e Raimundo andaram seriamente brigados: anos depois se reconciliaram” (1950); e O noivado de Bilac de Elmo Elton (1954); A boêmia do meu tempo, de Leôncio Correia (1955); Olavo Bilac. O homem e o amigo de Nelson Líbero (1960); e Vida e Poesia e Olavo Bilac (1963, 1965, 1972, 1977, 1991, 1992, 2007) de Fernando Jorge.
[7] JORGE, Fernando. Prefácio à 2a. edição. In: JORGE, Fernando (Ed.). Vida e poesia de Olavo Bilac. 3. ed. São Paulo: McGraw Hill, 1977.
[8] DECRETO n. 56.742. In: Bilac, Olavo, A Defesa Nacional, op. cit., 1965, p. 19-20. n. 61, ago. 2015 (p. 122-139) 134
[9] MAUL, Carlos. O Que Significa Este Livro. In: BILAC, Olavo, op. cit., 1965, p. 13.
[10] DECRETO n. 58.222, de 19 de abril de 1966. Coleção de Leis do Brasil - 1966, Página 85 Vol. 4. Disponível em <http://goo.gl/OjceMS>. 31/07/2025.
BIBLIOGRAFIA
BILAC, Olavo. Obra reunida. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1996.
DIMAS, Antônio. Bilac, o jornalista: Ensaios. São Paulo, SP, Brasil: Campinas, SP, Brasil: EDUSP: Imprensa Oficial; Editora Unicamp, 2006. v. 3
HANSEN, Patricia Santos. Em marcha! Olavo Bilac e as trajetórias da Liga da Defesa Nacional e da Liga Nacionalista de São Paulo. In: SCHUSTER, Karl; SILVA, Giselda; MATOS, Julia (Orgs.). Campos da Política. Discursos e prática. São Paulo: LP-Books, 2012. p. 159–181.
HANSEN, Patrícia Santos. Golpes de Memória: usos políticos de Olavo Bilac no século XX. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 61, p. 122, 22 jul. 2015.
HANSEN, Patricia Santos. A Defesa Nacional de Olavo Bilac, entre o patriotismo cívico republicano dos anos 1910 e o autoritarismo militar dos anos 1960. In: HANSEN, Patricia Santos; GOMES, Angela de Castro (Orgs.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 403–435.
LAJOLO, Marisa. Usos e abusos da literatura na escola. Bilac e a literatura escolar na República Velha. Rio de Janeiro; Porto Alegre: Editora Globo, 1982.
SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capit́ulos de história intelectual: racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil. São Paulo, SP: Alameda, 2019.
Este texto contou com o apoio da FCT (CEECIND/04226/2022) e do CHAM (NOVA FCSH/UAc), através do projeto estratégico patrocinado pela FCT (UIDB/04666/2020) - https://doi.org/10.54499/UIDB/04666/2020.

Este artigo faz parte série especial Olavo Bilac: 160 anos lançada pela Revista Voz da Literatura no segundo semestre de 2025.


Excelente artigo Patrícia, aprendi muito, obrigada. Tema de grande atualidade posto que evidencia as possibilidades de apropriações mesmo portmortem