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TRADUÇÃO | "A porta morgana" de Giorgio Caproni: poesia e tradução

Atualizado: 13 de ago. de 2018

por Patricia Peterle


Giorgio Caproni (1912-1990) já é conhecido por aqui como poeta, aliás como um dos grandes poetas da segunda metade do século XX. Na antologia publicada em 2011, A coisa perdida – Agamben comenta Caproni, é possível acompanhar o caminho dessa escrita, uma vez que nela temos pequenas amostras de todo o seu percurso poético: do primeiro livro Como uma alegoria (1936) ao póstumo Res amissa (1990), organizado pelo amigo e filósofo Giorgio Agamben. Sem dúvida a poesia é uma necessidade, é uma exigência que se impôs para Caproni, que faz parte daquele grupo para quem o laboratório poético, aos poucos, se transforma num modo de refletir sobre o que acontece na sociedade, sobre as relações humanas, enfim, sobre o que está ao redor: uma forma de conhecer. Nesse sentido, é interessante pensar como essa escrita que terá sempre elementos concretos (bares, copos, trens, mesas, portas, janelas) ao lado de outros mais lábeis (névoa, neblina, fumaça), trabalha com essa concretude dos próprios objetos e também da língua.


São várias as atividades que Caproni desenvolve ao longo dos seus 78 anos vividos entre Livorno, Gênova e Roma. A tradução é a mais importante depois da poética, na verdade, é um espaço que alimenta a reflexão de Caproni e sua própria poesia, como se observa em vários momentos dessas páginas. O deslocamento da centralidade do eu, a figura do outro, a atenção para os aspectos do cotidiano e concretos não deixam de ser fruto do questionamento de algumas categorias essenciais como pessoa, espaço, tempo e experiência. Em relação a essa última, poderíamos lembrar de alguns versos que colocam em evidencia o traço paradoxal de sua escrita: “Todos os rincões que vi, / que visitei, agora eu sei – estou certo: / por lá jamais andei”. A atividade de crítico, colaborador de várias revistas e jornais, importante por ajudar na renda familiar, é mais do que complementar, na verdade, é um laboratório em paralelo, no qual Caproni falando de questões da língua da poesia, lendo outros poetas, falando sobre sua atividade de tradução, não deixa de refletir e dar pistas principalmente sobre sua prática poética.


A porta morgana: a Palavra – sobre poesia e tradução, reúne uma seleção das críticas escritas por Giorgio Caproni. Essa parte da produção é tão intensa quanto as outras, indo desde a primeira metade da década de 1930 até a segunda metade de 1980. Isso significa que esse tipo de escrita segue em paralelo à elaboração, à iniciação e amadurecimento, do texto poético. Uma hipótese, portanto, é a de que esses textos constituem uma espécie de laboratório do poético em paralelo. A edição brasileira teve como ponto de partida os quatro volumes de Prose critiche, organizado por Raffaella Scarpa, com introdução de Gian Luigi Beccaria. Foram escolhidos 41 ensaios, dentre os mais significativos e emblemáticos. Ensaios por meios dos quais o poeta se abre e mostra um pouco das trilhas percorridas em campo poético.





Os textos dedicados à tradução compõem a última seção desse volume, Laboratório poético III – sobre tradução, atividade que segue em paralelo à produção poética e crítica, espaço também de reflexão sobre os próprios processos de escrita. Em mais de uma ocasião, Caproni terá a oportunidade de dizer e reafirmar que não tem claramente as regras, os eixos norteadores tanto de seu laboratório poético quanto do tradutório. Contudo, é um fato que a página em branco é um espaço de complexos processos. Ele perpassa pela grande pergunta: traduzibilidade e/ou intraduzibilidade? Opta pela intraduzibilidade. A essa altura outra questão surge: como opta pela intraduzibilidade se traduziu muito e traduziu grandes autores. É justamente do plano da experiência com o texto de outrem, com a língua de outrem, que ele chega a essa conclusão. A tradução como transporte, transferência é uma tarefa fadada ao insucesso, à falência. E aqui retorna todo o debate que atravessa o Laboratório poético I, ou seja a discussão sobre poesia e linguagem poética, pois para Caproni, a tradução só é possível quando a música é sentida, e esse sentir, por si só, já transforma essa música em uma outra coisa; que por sua vez, possui características do traduzido, e também marcas de quem a traduziu, sendo o resultado final, nem um e nem outro, uma terceira via; um entre-lugar, que foi sendo gerado durante o próprio processo de tradução. Talvez seja por isso que no primeiro texto, “Pão e bread”, Caproni sinta a necessidade de falar sobre poesia, sobre a palavra em poesia. Uma comparação cara ao poeta que a usará em outros momentos é entre a tradução e a música. Por exemplo, uma música feita para violino, a ser tocada, por uma flauta, um oboé ou uma corneta, só é possível se sofrer modificações. Além disso, esse processo não é nunca estático e igual, pois depende de como os timbres são percebidos pelo ouvido que os escuta.




As afinidades e diferenças entre as línguas se anunciam e se fazem ver na tradução. Dentro desse debate, Caproni parece tender para a posição benjaminiana, da transformação e renovação de tudo o que vive, ou seja, que ao perviver o original sofre modificações. Essa questões, de forma mais prática e concreta, aparecem nos comentários feitos às traduções de Antonio Machado, Paul Valéry e Louis-Ferdinand Céline. A tradução, a medida que a leitura vai sendo feita, fica claro que se torna um terreno mais do que fértil de aprendizagem e de experimentação do Caproni-poeta. Esse complexo processo, também de embate com o texto do outro, é uma outra página em branco que, aos poucos, acolhe um texto terceiro que vai sendo tecido. Um apropriar se desapropriando, como coloca Agambem no prefácio de Res Amissa. Porém, toda a importância da palavra, sua história cultural e etimológica na língua de partida, que corre o grande risco de se perder (como pode ser no caso da palavra “pão” e “bread”) não pode gerar o risco oposto, ou seja, o de ser literais quando se pode ou é preciso ser. É justamente com um exemplo desse tipo, que Caproni conclui o último texto “Divagações sobre o traduzir”, conferência dada em ocasião do recebimento do prêmio Monselice, atribuído-lhe pela tradução de Il n’y a pas de paradis de André Frenaud.


Nos 41 textos reunidos neste livro se encena um pensamento sobre poesia, sobre tradução que perpassam por uma questão mais profunda que é a própria reflexão sobre linguagem. A primeira parte do título desse volume é um verso, justamente, do poema “A porta” que na sua construção vai elencando uma série de traços (transparência, opacidade, labiríntica, murada) na tentativa de perfilar essa porta, que no final é definida “A porta / morgana: / a Palavra”[“La porta morgana: / la Parola”] Caproni vai buscar na mitologia céltica, nas histórias do Rei Artur, essa porta que nada mais é do que a palavra. Não é, enfim, uma coincidência que ele escolha o termo “morgana”, referência à fada, cujas qualidades boas e generosas podem se tornar maléficas e até diabólicas. Fada também presente em Orlando Furioso, habitante com suas outras duas irmãs de uma ilha para além das colunas de Hércules. É, portanto essa tensão, que não precisa ser resolvida, que Caproni coloca a nu na linguagem. Gesto problematizador e sintomático de certa produção filosófica e poética ao longo do século XX e também XXI. A voz crítica de Caproni dialoga com os problemas da sociedade italiana do pós-guerra e do boom econômico, mostrando como a poesia é uma ação de disposição para o exterior e para o sentido. O texto literário é uma encenação, possui uma performatividade da linguagem, não é só técnica: “escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida”, para lembrar Deleuze. O poético, assim, mais do que oferecer formas e contornos, aponta para a não-forma, para o informe, o inacabado e o indiscernível: os fantasmas das palavras, como Caproni soube tão bem ler nos poetas arrolados na corrente liguística.


O percurso oferecido é, portanto, uma experiência humana, ao longo do século XX, sobre a condição humana, é, enfim, uma experiência pensante da língua, na língua, que tem lugar nesses diferentes laboratórios do poético.


{n. 4 | agosto | 2018}


{} texto adaptado da introdução “Às voltas com Giorgio Caproni” do livro em análise.



 

{PATRICIA PETERLE é tradutora e docente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).}










 

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