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Sobre quadrinhos, livros e literatura


por Ivan Lima Gomes


A mais recente lista de indicados ao Man Booker Prize teve repercussão incomum na mídia especializada. Tido como o mais importante prêmio literário da Grã-Bretanha, o prêmio incluiu pela primeira vez uma graphic novel como melhor obra literária de 2018. A indicação de Sabrina, de Nick Drnaso, pareceu chamar mais atenção do que o próprio prêmio em si ou os outro indicados, merecendo algumas notícias de jornal a respeito. Em geral, destacaram o feito inédito de uma graphic novel – no mundo anglossaxão – ou uma história em quadrinhos – conforme noticiou a imprensa local – ter sido indicada ao Man Booker Prize como livro do ano, na mesma categoria de um nome como Michael Ondaatje, com seu Warlight – ele próprio vencedor do prêmio em 1992, com O Paciente Inglês. No ultimo dia 16 de outubro, anunciou-se – de maneira bastante discreta, diga-se de passagem – o prêmio para Anna Burns, por Milkman.


A ênfase na indicação de Sabrina suscitou reações pra lá de variadas. A partir da constatação de que uma premiação literária desta envergadura ampliava o alcance das suas indicações, alguns diagnosticaram o que seria o sinal de certo cansaço da produção literária mais recente. Não raro, tais interpretações sinalizaram para uma “crise da literatura contemporânea”, que precisa dialogar com formas de comunicação mais “acessíveis” e “simples”, como os quadrinhos, para poder continuar existindo. Houve mesmo quem interpretasse tal diálogo como sinal de decadência cultural, representativo dos nosso tempos de leituras breves e sem fôlego e onde a crítica, por meio de premiações, precisa fazer todo tipo de concessão para alcançar um público mais amplo. Outros, por outro lado, celebraram o ineditismo da indicação, apontando o dado novo que as novelas gráficas introduzem nas formas de narrar histórias no nosso tempo.



Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Ambas as avaliações parecem perdem de vista as relações históricas entre imagem e texto e, mais especificamente, entre quadrinhos e literatura. A visualidade do texto é uma presença recorrente na produção histórica dos impressos, cujo marco decisivo pode ser apontado, segundo a famosa formulação de Marshall McLuhan, a invenção da imprensa moderna em meados do século XV. Ali estabeleceram-se as bases de uma cultura essencialmente voltada para o visual, onde a visibilidade e o olhar ganham centralidade na apreensão e construção do saber letrado. Não por acaso, logo nos anos iniciais que se seguiram à difusão da nova tecnologia de Gutenberg, as relações entre imagem e texto fizeram-se presente de forma fundamental para a consolidação do livro enquanto formato, seja a partir do cuidado com a tipografia presente numa obra como Champfleury [1525], de Geoffrey Tory, dedicada a compor o alfabeto a partir de cuidados proporções anatômicas; seja a partir de obras que exploraram mais a fundo as interações visuais no texto para a elaboração de narrativas. Um dos incunábulos mais conhecidos a explorar tais possibilidades é seguramente o Hypnerotomachia Poliphili. Impresso por Aldus Manutius em 1499, contém belas imagens que acompanham o texto creditado a Francesco Colonna. Integrados, imagem e texto assumem atmosfera enigmática como a de um sonho, tornando Hypnerotomachia Poliphili uma daqueles obras envoltas em mistérios e que suscitam toda sorte de interpretações sobre seu significado ainda hoje.


Fatores como tipografia, qualidade do papel, cores etc. apontam para o importante papel da dimensão material na composição de um livro, incluindo aqui as obras literárias. A visualidade do texto literário também pode ser explorada a partir do impacto que as transformações tecnológicas e os inúmeros dispositivos óticos – do daguerreótipo à fotografia – que se proliferaram ao longo do século XIX introduziram sobre os processos criativos de uma série de escritores. a literatura já se mostrara sensível às alterações na sensibilidade promovidas por novas tecnologias e artes técnicas como a fotografia e o cinema. Os escritores se mostravam sensíveis ao novo “horizonte técnico” que se desenhava diante deles. Como sintetizou em 1909 o cronista carioca João do Rio “ao demais, se a vida é um cinematógrafo colossal, cada homem tem no crânio um cinematógrafo de que o operador é a imaginação”. À guisa de exemplo, é possível identificar um engajamento de boa parte da produção literária americana do século XIX com o olhar e a câmera, desenvolvidas a partir de metáforas visuais e terminologias fotográficas, apontando para aquilo que se convencionou chamar de realismo. Porém, resumir o realismo literário a apenas um esforço para representar o mundo tal como ele é redutor, quando o que está em jogo é justamente um poética da representação, envolvendo tanto o que pode quanto o deve ser representado – e como fazê-lo.


Linguagem que se desenvolveu historicamente a partir da mídia impressa, as histórias em quadrinhos se alimentaram de fontes bastante parecidas das descritas até aqui. Que se trata de linguagem visual e gráfica, não restam dúvidas; cabe reforçar, porém, que novas tecnologias de impressão – rotogravura e impressora rotativa, por exemplo – logo adotadas pela moderna imprensa de fins do século XIX permitiram a impressão em larga escala e a cores de suplementos inteiros dedicados aos quadrinhos. Aquele que é considerado por muitos como “o primeiro personagem de quadrinhos” ganhou destaque especial em parte pelo interesse dos donos do jornal The New York World em explorar as capacidades de uma recém-adquirida impressora rotativa em quatro cores. Nascia The Yellow Kid.


A partir de então, os quadrinhos ganhariam autonomia e alimentariam a imaginação de geração de leitores. Tal como Ítalo Calvino, muitos devem ter aprendido a “pensar com imagens” a partir dos quadrinhos. Outros tantos devem ter lido primeiras versões de clássicos da literatura mundial e brasileira em adaptações para a linguagem dos quadrinhos – para, em seguida, seguirem os conselhos dos editores e deixarem de lado o “aperitivo” dos quadrinhos e correrem para “ler o próprio livro” e organizar sua biblioteca, “porque uma biblioteca é sinal de cultura e bom gosto”. Leitura fugidia, mas não de todo esquecida; não raro, os quadrinhos podem vir a se localizar nas zonas cinzentas da memória, a serem retomadas a partir de um contato afetivo com revistas e jornais antigos. Em “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, de Umberto Eco, os quadrinhos lidos ao longo da infância de Yambo – cujo nome completo, Giambattista Bodoni, é uma referência direta ao tipógrafo e editor italiano de fins do século XVIII e início do XIX – são um recurso gráfico e narrativo para enfrentar a perda de memória vivida pelo personagem.


A intertextualidade e a atenção dada à dimensão visual poderiam conferir à obra a alcunha de “novela gráfica”, se esta já não estivesse em voga no mercado de quadrinhos desde fins dos anos 1970. E aqui voltamos para “Sabrina”, obra herdeira desta tradição editorial que se tornou reconhecida a partir dos anos 1980 através de nomes como Alan Moore, Frank Miller e Neil Gaiman, entre outros. Herdeira principalmente por se dedicar a explorar a linguagem das HQs para desenvolver uma narrativa ficcional de fôlego sobre temas como depressão e boatos. O trabalho de Nick Drnaso explora a difusão de uma série de notícias falsas em torno do assassinato brutal da personagem-título, e como a circulação destes boatos via imprensa altera as vidas de alguns dos seus conhecidos. Para além dos super-heróis que tanto marcaram as revistas em quadrinhos por décadas, uma graphic novel como “Sabrina” reforça o interesse deste formato de quadrinhos em enfatizar as vidas de pessoas comuns, anônimas e deconhecidas, quando atravessadas por acontecimentos maiores e que superam suas capacidades de controlá-los. As especificidades da narrativa gráfica dos quadrinhos conferem a Sabrina especial relevância no debate contemporâneo, pois permitem dar corpo a uma série de sensações – ansiedade, medo, angústia, vazios – que experimentamos em nosso dia a dia recente em torno da proliferação de informações e notícias que, apesar de caberem nas nossas mãos, terminam por nos soterrar diariamente. Em contraste, a narrativa é lenta e quase impessoal: várias páginas não apresentam nenhum texto sequer e retratam cenas banais do cotidiano, como diálogos sobre memórias de infância, alguém se preparando para dormir ou aguardando um voo. Tudo numa linguagem gráfica minimalista, mais próxima do design informativo de manuais de segurança presente em aviões do que das tons berrantes em quatro cores que historicamente marcaram a estética dos quadrinhos.



Não por acaso, Sabrina é uma ótima graphic novel para colocar em questão as formas como produzimos e consumimos notícias a todo momento. Se dialoga explicitamente com o contexto americano e suas fake news, certamente também terá a muito a dizer aos leitores brasileiros. Tal como lá, por aqui nos vimos igualmente envolvidos numa trama eleitoral com ares conspiratórios, onde uma série de elementos indicam que houve suporte financeiro ilegal para a promoção de propagandas ilegais e conteúdo falso. Tais maquinações contribuíram sobremaneira para que chegássemos ao atual momento, onde uma candidatura fundamentada no ódio político e moral e carente de propostas concretas - ao ponto de eximir-se do contraditório ao negar-se a comparecer a debates no segundo turno - foi declarada vitoriosa pelas urnas. Num cenário confuso como esse e à beira do colapso, talvez seja realmente difícil acompanhar o turbilhão de reportagens, postagens e memes – afinal, “quem lê tanta notícia”? Algumas obras – de arte, literárias, em quadrinhos – servem justamente para propor uma leitura criativa do seu tempo, sintetizando muitos dos dilemas que observamos e introduzindo questões que podem nos ajudar a pensar caminhos. Com ou sem prêmio literário, Sabrina é dessas obras.



IVAN LIMA GOMES é Doutor em História pela UFF, com tese de doutorado premiada no 28º HQ Mix na categoria “melhor tese de doutorado”. Professor da Faculdade de História na UFG. Autor do livro: “Os novos homens do amanhã: projetos e disputas em torno dos quadrinhos na América Latina” (Prismas, 2018).


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