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Listas literárias e formação humana: um debate que atravessa o cânone escolar e o mercado editorial

Atualizado: 16 de jun. de 2021

por Arnon Tragino*



Temos invisibilizado as listas literárias que nos cercam, esquecendo-nos dos registros que elas trazem daquilo que lemos, devemos, precisamos ou iremos ler. É quase automático, no processo de nossa formação como leitores, fazermos seleções, dentre as muitas possibilidades de livros que chegam às nossas mãos. Porém, por trás dessa “naturalidade” no processo, estão as influências e os porquês de tais ou quais livros estarem disponíveis para a leitura.


O rol dos mais vendidos, as leituras obrigatórias para os vestibulares ainda existentes, as indicações na internet por meio de booktubers e instabookers, as obras do tipo “os cem melhores livros do século”, os clássicos recomendados na escola, as edições especiais de jornais e revistas que “recomendam” leituras etc.: todas essas esferas compartilham listagens literárias, suprindo questionamentos nossos acerca do que vamos ler: as listas nos respondem antes mesmos de, efetivamente, formularmos realmente perguntas. No entanto, tais sugestões são legítimas para a formação humana? É o que veremos nessa breve reflexão.


Vamos separar o joio do trigo: pelos aspectos que apontamos, dois longos caminhos são tomados pelas listas.


O primeiro caminho, que leva a um âmbito institucional, como a escola e a universidade, por exemplo, divulga listas da literatura com base nos estudos literários, na aquisição de um repertório cultural advindo de pesquisas, teorias, críticas e leituras especializadas; esse processo definiria obras clássicas que precisam ser apropriadas pelas novas gerações, devendo, portanto, ser ensinadas nos processos educacionais. Os saberes construídos por essas áreas reúnem e condensam nas listas as publicações mais relevantes, aquelas que chegaram a um alto grau de importância em meio aos trabalhos realizados. Situação que, no caso da literatura, resguarda e reforça a necessidade tanto teórica quanto ficcional por estabelecer parâmetros estéticos/artísticos.


Nos cursos de Letras, nos estudos de literatura e nos vestibulares (como portal de acesso ao ensino superior), as escolhas e indicações são feitas com base no desenvolvimento científico, em campos do conhecimento e suas correlatas disciplinas acadêmicas, e nas disputas entre diferentes correntes teórico-metodológicas, em uma dinâmica própria do ensino superior. O repertório desse contexto, a ser “listado”, se transforma, por exemplo, por vários movimentos: quebras de paradigmas com a análise de novas publicações, resgate de obras importantes pouco apreciadas no passado, novos olhares sobre obras já reconhecidas no meio, relações e comparações com outros campos, etc., o que torna essa lista mais fluida e dinâmica, justamente para poder abarcar uma possível diversidade pretendida com as pesquisas.

Por outro lado, as informações produzidas nesses espaços chegam com menos rapidez à educação básica. E justamente ali, onde esse movimento seria mais necessário, há maior tendencia à conservação – constituindo aquilo que especialistas denominam como “cânone escolar”.


Poderíamos pensar que existe uma suposta incompatibilidade entre as duas instituições (universidade e escola), cujos objetivos seriam divergentes no tratamento da literatura, e assim se explicaria a distância que se descreveu linhas acima. Mas a hipótese de que essa distância decorreria de uma diferença de objetivos fica invalidada, quando observamos o processo histórico de sucateamento principalmente na educação básica do país, e as influências políticas conservadoras que restringem sua autonomia, para afastar com maior vigor a literatura que pode ser ensinada na escola da que é estudada nos estudos literários na universidade. A consequência disso é a manutenção de esvaziamentos: o trabalho do professor de literatura como intelectual é reduzido, tanto quanto as possibilidades de leitura dos alunos.


Em um cenário convencional do ensino médio, primeiro se ensina o “contexto histórico”, depois as principais características de cada “escola literária”, para então se falar de autores representativos com trechos ou fragmentos de suas obras. Vemos, nisso, menções aos poemas de Gregório de Matos, ilustrando o Barroco; algumas liras de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, no estudo do Arcadismo; poemas escolhidos de Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo, para mostrar o Romantismo; Memórias póstumas de Brás Cubas, ou Dom Casmurro, de Machado de Assis, para falar do Realismo; O cortiço, de Aluísio Azevedo, representando o Naturalismo; poemas de Olavo Bilac, para explicar sobre o Parnasianismo, e de Cruz e Sousa, para o Simbolismo; chegando a Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, nas aulas acerca do Pré-modernismo; e, quando há tempo, poemas de Carlos Drummond de Andrade para trabalhar com o Modernismo; e, enfim, contos de João Guimarães Rosa ou Clarice Lispector, para entender o “Contemporâneo”.


A questão que se coloca é como esses textos e obras são lidos e estudados no contexto escolar e em meio aos limites políticos, institucionais e didáticos que embargam o trabalho do professor e o repertório dos alunos, esvaziando o ensino de literatura. A lista produzida no parágrafo precedente ainda resguarda as legitimações conquistadas pelas pesquisas científico-acadêmicas, mas seu uso na educação básica (em condições aviltantes para o trabalho docente e com alunos em condições sociais adversas) pode abalar qualquer herança crítica dessas obras que carregam alguma possibilidade de formação humana.


A lista de obras literárias a serem conhecidas por meio do processo de escolarização tem sua potencial finalidade desviada por conta de problemas estruturais, inerentes ao sistema mais amplo – e não necessariamente por deficiências do professor ou incapacidade dos alunos. O aprendizado a respeito de questões sociais e culturais sobre o Brasil do século XIX, por exemplo, advindos da leitura de Machado; o apreço promovido pelo contato com a estética das obras e as relações humanas que desvelam; e as continuidades desses processos, numa leitura literária que poderia se enraizar como elementar na vida educacional, provavelmente, seriam questões vencidas na formação dos alunos, se se superasse o trabalho vazio (ou “fantasmagórico”) dado ao professor de literatura.


O segundo caminho, paralelo ao que descrevemos a respeito dos estudos literários e da escola, é o do mercado editorial, o do consumo dos livros, o da leitura mais pessoal que se vincula ao ambiente familiar e às relações familiares, o das sugestões da internet, e também o da literatura de massa renovada a cada lista dos mais vendidos. Os espaços de circulação de listas, nesse segundo caminho, não são homogêneos e, além disso, a proliferação de listagens, e suas respectivas indicações, é muito grande, havendo poucos “filtros” de seleção de qualidade e/ou de mediação de profissionais experientes.


A cultura de massa, que cria a literatura de massa, já formata previamente um tipo de livro para ser consumido. O produto lançado, ao circular na sociedade, com vultuosos investimentos de marketing, promove, ao mesmo tempo: a) um apagamento do sujeito e de sua autonomia; e b) uma alienação quanto à sua apropriação, já que a massificação iguala comportamento, expectativa e aceitação do público junto ao que se produz. O livro e a provável leitura resultante já possuem traços delineados de antemão pelo mercado, construindo um perfil de consumo, que também forja a prática de leitura dos alunos da educação básica de modo paralelo às recomendações do professor de literatura, por exemplo. A ação dos leitores quando compram e leem tal material é pouco modificada em comparação com os leitores que recebem alguma mediação, porque o objeto comercializado e lido condiciona isso.


A lógica da lista de livros mais vendidos não é mostrada apenas como resultado daquilo que mais se comprou durante uma semana nas livrarias, mas inscreve também a possibilidade de induzir os leitores a comprarem tais livros (e, assim, a aumentarem ainda mais as vendas desses mesmos títulos). Numa lista em que podem constar Harry Potter, de J. K. Rowling; Crepúsculo, de Stephenie Meyer; Jogos Vorazes, de Suzanne Collins; e A culpa é das estrelas, de John Green; é apontado um caminho de consumo e todo um procedimento sobre como ler: as obra que mereceriam a “atenção” dos leitores guardam afinidades entre si com a valorização do critério “vendagem”. A despeito do quão inteligente um aluno possa ser e a despeito do próprio autor querer que sua literatura sofra menos com intervenções comerciais, o mercado elabora um conjunto de fatores que restringe as obras a permanecerem na superficialidade, submetida à lógica do fetiche e consumo.


Ao buscar ser aceito socialmente por aquilo que lê e conhece, o leitor do livro mais vendido quer mostrar aos seus pares a sua atualização com a cultura (consumista e narcísica) contemporânea. O fato torna mais difícil a formação crítica desse leitor, visto que as listas simulam apenas uma liberdade de escolha (e de consumo/leitura). A publicização e a atenção dispensadas ao livro “mais vendido” inscrevem na lista o que as pessoas “escolherão” comprar, em um efeito bastante conhecido pela psicologia social: a necessidade de pertencimento, de unidade com o grupo. A lista leva a uma aflitiva vontade de ler o que todo mundo está lendo. Mas tudo isso funciona pelo apagamento do trabalho de marketing subjacente e faz parecer que os leitores optaram por adquirir o(s) livro(s) espontaneamente; esse movimento está articulado à difusão da ideia de que aquelas escolhas/leituras foram baseadas no próprio gosto.


Mesmo que haja, nas listas dos mais vendidos, cânones, com grandes potencialidades para desenvolver uma formação humana por meio da atividade de leitura, isso pode não ser atingido, porque não há uma mediação adequada, com um profissional capacitado que traga noções críticas para que uma leitura mais cuidadosa se efetive (uma leitura que identifique intencionalidades, construções estéticas, visões de mundo, questões sociais etc.), como em um processo de ensino. Nesse sentido, o fato de a crítica literária ter-se restringido à esfera universitária e ter-se encolhido na esfera midiática agrava ainda mais a situação.


A aposta numa “liberdade” de escolha dos leitores, que toma como norte a questão do consumo (por meio das listas dos mais vendidos) e que, portanto, encurta suas potencialidades interpretativo-críticas, é uma postura contrária à que se pretende ser formadora, no sentido humanista do termo. A formação só acontece se há pensamento teoricamente elaborado, quando se desenvolve o saber sistematizado na história, tornando-o um legado a ser ensinado e difundido socialmente para que sejam identificadas e construídas novas formas de conhecimento. A mediação de leitura e a avaliação quanto à qualidade do que se lê são funções tradicionalmente escolares, realizadas e promovidas por uma instituição educacional que tenha apoio nos estudos literários, e nas reflexões acadêmico-científicas. Por isso, não há formação viável apenas pelo consumo dos livros de literatura em que a defesa desses objetivos não esteja presente, como acontece no interior da lógica do mercado inerente às listas que aqui se discute.


No cruzamento dos dois caminhos por onde passam as listas literárias, apenas um consegue trabalhar a favor de uma formação humana. A literatura ensinada na escola (com suas listas de clássicos) tem como proposta sistematizar o saber, mediar a leitura, aprofundar e ensinar o conhecimento elaborado e avaliar o que foi aprendido, bem como o processo de desenvolvimento dos alunos. Não queremos que nossa reflexão seja uma metáfora do “caminho do bem” e do “caminho do mal”, levando à condenação toda leitura que venha do mercado. Mas é necessário reafirmar que apenas a lista literária da escola que tem o compromisso – prévio – de ser formadora na direção da emancipação humana.



 

ARNON TRAGINO é licenciado, metres e doutor em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Integrante desde 2013 do grupo de pesquisa Literatura e Educação. E-mail: arnon.tragino@gmail.com

 

Referências

ADORNO, Theodor W. Indústria cultural. Tradução de Vinicius Marques Pastorelli. São Paulo: Unesp, 2020.


CEREJA, William Roberto. Ensino de literatura: uma proposta dialógica para o trabalho com literatura. São Paulo: Atual, 2005.


DALVI, Maria Amélia. Formação de leitores e educação literária: uma base que desaba. Voz da Literatura, Brasília, nov. 2018. Disponível em: https://www.vozdalitera­tura.com/post/fformação-de-leitores-e-educação-literária-uma-base-que-desaba. Acesso em: 5 de maio de 2021.


FERREIRA, Nathalia Botura de Paula; DUARTE, Newton. Literatura e educação: uma análise marxista. Cadernos de Campo. n. 13, 2010, p. 125-136. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/cadernos/article/view/5141/4216. Acesso em: 5 de maio de 2021.


LAJOLO, Marisa. O vestibular e o ensino de literatura. In: Seminário do G. E. L. 31, 1986, Anais, Universidade Estadual de Campinas. Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/vestibular.htm. Acesso em: 5 de maio de 2021.


TRAGINO, Arnon. Duas literaturas na mesma lista: a literatura brasileira canônica e os best-sellers jovens-adultos contemporâneos internacionais na leitura de alunos universitários ingressantes. In: DALVI, Maria Amélia (Org.). “Nenhuma teoria, nenhuma fantasia”? Estudos sobre o que leem estudantes das licenciaturas em Letras e Pedagogia. Vitória: Edufes, no prelo.



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