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Fragmentos para escrever uma paisagem

por Tatianne Dantas*


Se ando a ler um livro e ele torna todo o meu corpo tão frio que parece que lume algum, poderá, alguma vez, voltar a aquecê-lo, sei que é poesia. Se eu sinto, fisicamente, como se o alto da cabeça estivesse a ser arrancado, sei que é poesia


Emily Dickinson

In: A branca dor da escrita, de Lucia Castello Branco (Ed. 7 Letras, 2003).

Tradução de cartas e poemas: Fernanda Mourão.


1.


Há uma estrada branca à minha frente. Desértica, como a folha de papel. Olho para o lado, buscando um poema que me leve ao começo. Encontro o poema-oferenda de Maria Gabriela Llansol para Emily Dickinson, que diz: Só o leme do barco destroçado veio dar ao poema[1].


(primeiro escrevi esse texto à mão. na minha letra manuscrita o d se confunde com um l e leio: só o leme do barco destroçado veio lar ao poema).


Há uma direção entre os destroços, em alto-mar.








2.


Esse é um relato de viagem que começa numa estrada e se abre para o dia 30 de dezembro de 2017. O branco toma conta de tudo. No livro A branca dor da escrita, Lucia Castello Branco escreve: Uma mulher, nascida em 1830, em Amherst, Massachusetts, um dia passou a se vestir toda de branco e se fechou em um quarto onde, encerrados nas gavetas de uma cômoda, seriam guardados os seus fascículos. A mulher copiava seus poemas em folhas de papel-carta e, de tempos em tempos, reunia quatro ou seis dessas folhas e as costurava em fascículos. Nem sempre fazia isso, também escrevia em pedaços de papel usados, envelopes rasgados, qualquer lugar que pudesse ocupar com a escrita.


O movimento incessante da escrita, a sedução do gesto de segurar um lápis com a mão e escrever em qualquer lugar, a qualquer momento, é que me leva à poesia de Emily Dickinson. O que me faz percorrer uma estrada cheia de neve, no penúltimo dia do ano, para conhecer o lugar onde ela resolveu se fechar para só escrever e costurar seus poemas em fascículos. No dia seguinte, as autoridades em Boston decretariam estado de emergência na cidade e recomendariam às pessoas que não saíssem para comemorar o fim do ano na rua, porque à noite a temperatura seria perigosa. O evento ao ar livre foi cancelado. Mas ali, em meio às curvas necessárias para chegar em Amherst, no dia anterior, eu só conseguia pensar em como aquele caminho se assemelhava à paisagem do sertão. Num dia de sol, o branco da neve parece querer cegar a gente. Anotei essa frase e agora não lembro se pensei nela ou se ouvi alguém falando. Na paisagem do sertão, assim como naquela estrada que se desenhava na minha frente só plantas e animais muito fortes conseguem sobreviver.


Em outra nota no diário de viagem: É preciso querer viver desesperadamente.



3.


Em 15 de abril de 1862 a neve provavelmente já tinha derretido. Depois de ler em um jornal um texto chamado Letter to a young contributor, Emily Dickinson envia uma carta com quatro de seus poemas para Thomas Wentworth Higginson, autor do artigo, perguntando se seus versos respiravam. Ele era conhecido como alguém que se preocupava com a condição da mulher escritora mas, mesmo assim, só publicou os poemas de Emily depois de sua morte. Em um texto de 1891, Thomas fala sobre a impressão de ter lido aqueles poemas, pensado como eles eram novos e originais, mas que não tinham lugar dentro do que era conhecido como poesia até aquele momento. Seus poemas estão nesse terreno do inclassificável. Estrangeira, dizem uns. É difícil determinar 'sobre o que' essa poesia fala, dizem outros.


Sr. Higginson,


O senhor está tão intensamente ocupado para dizer se o meu

Verso está vivo?

A Mente está, ela própria, tão próxima – não pode ver com clareza

– e não tenho a quem perguntar –

Se o senhor achar que respira – e puder me dizer – eu sentiria

imediata gratidão –

Se eu cometo o equívoco – que ousará dizer – me daria grande

honra – com o seu gesto –

Incluo aí o meu nome – pedindo-lhe, se me faz o favor – senhor –

de me dizer o que é verdade?

Que o senhor não me traia – é desnecessário pedir – já que a

Honra é garantia dela mesma – [2]



4.


Pouco mais de um quilômetro separa a entrada da cidade da casa em que ela viveu e do cemitério em que foi enterrada. A casa virou um museu e só é possível visitar os cômodos com o acompanhamento de uma guia que parece ter lido na cartilha dos que acham possível explicar a poesia de Emily através da vida dela. Tinha toda uma teatralidade no jeito como ela contava a história que levantou minha desconfiança. Parecia que algo permanecia escondido na relação da poeta com a conservadora cidade norte-americana. Toda a visita fiquei com a sensação que havia ali a tentativa de colocar uma névoa sobre Amherst, e criar a ideia que o lugar era o responsável pela criação. Mas era uma casa velha, cheia de brechas que falavam sobre o que não está ali.


Vários poemas foram lidos pela guia durante a visita, enquanto eu tentava escapar para olhar as coisas com calma. Um dos mais famosos em que Emily diz: I’m Nobody! Who are you? Are-You-Nobody-Too? Apesar de a guia tentar, a todo custo, dar materialidade à poeta através dos fatos da sua vida, o poema, como alguém que gritava entre as brechas da casa, dizia: Eu sou ninguém. E convoca quem quiser acompanhá-la a espalhar a notícia, ressaltando a monotonia que é ser Alguém. Toda a obra de Emily é composta em um espaço em que o Eu está ausente. A escritora canadense Anne Carson resgata uma palavra dos escritos da filósofa Simone Weil para falar desse estado de criação em que o Eu perde o lugar para que a escrita possa surgir. A Decreation (Decriação), nas palavras de Carson, é uma espécie de aniquilação da criatura em nós encerrada em um Eu e definida apenas por isso. Um movimento de desfazimento em que, moebianamente, a escritora caminha através de si mesma buscando na sua definição o ponto em que o Eu se esvai. A criação literária torna-se então o inquietante movimento de buscar uma suspensão das definições para que algo possa se definir a partir da escrita, mantendo o ponto de perturbação que será perpetuado no enlaçamento com quem lê e também faz, na leitura, uma espécie de decriação. É preciso estar aberta a essa perturbação.


Num momento de distração da

guia eu tirei a foto de uma das janelas da casa, a janela que fica entre a escada que dá acesso à parte inferior da casa e o quarto onde a poeta passou grande parte dos seus dias quando decidiu não mais sair de casa. O quarto onde passava as noites acordada e que no museu estava tão iluminado e cheio de cores, contrastando com as escolhas de Emily de se vestir sempre de branco e ficar acordada à noite. Meio tremida, em perturbação, talvez seja a captura de um estado em que os poemas me colocam: entre o quarto e o resto da casa, um momento fugidio, borrado, vestígio de uma ausência. Como se tivessem arrancado o topo da minha cabeça.






5.



O último movimento dessa viagem foi ir ao cemitério deixar um pedaço do mar no túmulo de Emily Dickinson. Tinha levado na mala uma concha de uma praia do litoral sergipano, chamada Caueira, queria deixar entre as canetas, lápis e pedaços de papel que as pessoas costumam deixar em túmulos de escritores, um pedaço daquilo que Emily só havia imaginado. Como ela diz em um poema: I never saw a Moor - / I never saw the Sea - / Yet Know I how the Heather looks / And what a Billow be.


Fui impedida pela neve, pelo branco que tinha tomado conta de toda a cidade. Se na ida para Amherst eu vi o sertão na estrada em meio à paisagem da neve, ali, no cemitério, à procura do túmulo de Emily, eu vi o mar. Joguei a concha entre as lápides.

[1] O poema completo de Maria Gabriela Llansol está no livro Onde vais, drama-poesia? [2] A tradução para essa carta é de Fernanda Mourão e está no apêndice do livro A branca dor da escrita, de Lucia Castello Branco.

 

TATIANNE DANTAS é psicanalista, mestre em Psicanálise: Clínica e

Cultura pela UFRGS, doutoranda em Estudos Literários pela Universidade

Federal de Sergipe (UFS).

 

Cartas para Emily Dickinson_Voz da Literatura_jul2021
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