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As cartas de Michelangelo

A cada ano, milhares de turistas de várias partes do mundo se acotovelam em uma das galerias da Academia de Belas Artes de Florença, na Itália, para se aproximar e registrar em bom ângulo a vista da monumental figura de David, esculpida por Michelangelo Buonarroti (1475-1564) entre os anos de 1501 e 1504. Qualquer apreciador dessa escultura logo nota, na visita, que as fotos divulgadas em abundância pela internet não chegam perto de reproduzir o encontro com a gigantesca estátua.


Michelangelo, por Jacopino del Conte (1510-1598)

A proporção do David de Michelangelo provoca a sensação de que o artista perfeitamente reproduz todos os detalhes virtuosos de um corpo belo e perfeito, como realização máxima dos ideais renascentistas. Michelangelo estudou anatomia e dissecou alguns cadáveres para estudar todos os meandros anatômicos do homem, antes de conseguir concretizar toda a beleza naquele bloco de mármore, que escolheu minuciosamente para produzir uma obra “eterna”.

A quase 300 quilômetros de Florença, a capital italiana, mais precisamente o Vaticano, abriga outra duas obras fundamentais de Buonarroti. Uma delas está na nave da Basílica de São Pedro: a delicada Pietà (1498-1499). Maria de Nazaré, com roupa de ricos detalhes de drapejamento, segura o corpo de seu filho. Quem se depara com a cena tem a sensação de que todo o peso do corpo de Jesus está ali reproduzido, congelado desde a primeira era cristã.

Saindo da Santa Basílica, a poucos metros dali há o movimentadíssimo e concorrido Museu do Vaticano. E é lá que os visitantes, em silêncio, arqueando o pescoço, poderão adentrar o recinto onde vislumbramos o teto da Capela Sistina, em que se encontram reunidos vários episódios bíblicos representados por meio da pintura de Ghirlandaio, Rafael e Michelangelo, entre outros. O mestre de Florença participa da Capela Sistina com seu reconhecido “O Juízo Final” (1535-41).

Somente esses três exemplos demonstram o que representa Michelangelo para a história da arte. Mesmo em vida, sua produção artística mereceu não só o reconhecimento de mecenas, mas sobretudo de outros artistas, que, diante de um talento inimitável, compuseram biografias suas, como Giorgio Vasari, Paolo Giovani, Ascanio Condivi.

Outro caminho para acessar detalhes da vida de Michelangelo, além das inúmeras biografias à disposição no mercado editorial, são suas quase quinhentas cartas, nas quais diversos pesquisadores já se debruçaram, como é o caso da pesquisadora Maria Berbara (UERJ), tradutora e organizadora de Cartas Escolhidas de Michelangelo Buonarroti (Ed. Unicamp; Unifesp, 2009, Coleção Palavra da Arte).

O trabalho de Maria Berbara é verdadeira preciosidade para o público brasileiro e para os aficionados na história das arte e na vida de um grande artista como Michelangelo. Além de traduzir e fazer anotações a 72 cartas, em processo de trabalho minucioso para fazer jus ao mestre Michelangelo, Maria Berbara escreve notas biográficas antes de cada fase da vida de Michelangelo em que as cartas estão dispostas. Assim, a um só tempo, o leitor dispõe de um epistolografia significativa, como fonte histórica primária, e de uma verdadeira biografia contada pelas cartas.

O que se observa pelas cartas não condiz com um estado idílico que se poderia supor para um artista com tantas magníficas obras. Pelas cartas, penetramos mais na existência de um gênio, em suas dificuldades familiares, bem como nas controvérsias relacionadas aos negócios que envolviam a encomenda e a realização dessas obras citadas acima e de tantas outras. Michelangelo teve vida longa, o que proporcionou-lhe um feito raro: conviver com cerca de sete papas e todo o séquito político e religioso que os cercavam. Buonarroti não esteve a salvo de perseguições políticas, nem mesmo de dificuldades financeiras. Somente ao final de sua existência, é que surgem cartas com comentários mais demorados sobre escultura, pintura e arquitetura, como na carta ao historiador e literato Benedetto Varchi em 1547:

(...) Digo que a pintura parece-me tanto melhor, quanto mais se aproxima ao relevo, e o relevo, tanto pior, quanto mais se aproxima à pintura; parecia-me, assim, que a escultura fosse o farol da pintura, e que a ambas separasse a mesma distância que há entre o sol e a lua. (...)

Não podemos, ao final, deixar de mencionar que, gênio de múltiplos talentos, Michelangelo ainda nos deixou muitos versos, muita poesia, em suas “Rimas”, um conjunto de mais de 300 poemas. Suas cartas também mencionam esse período dedicado à poesia. É incrível saber que as mãos desse escultor e pintor inigualável ainda lavravam versos, que, se não são a parte mais conhecida e apreciada de sua produção artística, simbolizam o respeito e devoção de Michelangelo também pela arte literária.


 

RAFAEL VOIGT, editor da revista {voz da literatura}

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