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Uma tal Madalena e o seu apostolado literário

PAULO NUNES

{Professor da Universidade da Amazônia, Belém-PA}




Madalena Penitente (1640) | Georges de La Tour (1593-1652)
Madalena Penitente (1640) | Georges de La Tour (1593-1652)

I – Para início de conversão

A centúria do XXI, posso estar redondamente enganado, neste momento brasileiro da insensatez do terraplanismo misógino e preconceituoso, pertence a elas. Pertencimento que não lhes é exclusivo, mas pode ser, apesar de, agregador e salvador (sem ser necessariamente messiânico). Por quê? Elas – escritoras de vários estilos e tons – trazem a radicalidade da mudança, princípios de ética e estética, embrincados; força que o mundo masculino, quando conhece, teme.

O patriarcado, desgastado aos extremos, precisa ruir; a lógica dos machos ruiu e abriu falência. É o que transcorre hoje, neste Brasil falocêntrico, racista, de raízes escravagistas. Para o contraponto à barbárie e ao descalabro, sobraram, na linha de frente do papel pautado, as poetas, os poetas, enfim, artistas, alimentados pela ribalta, e que agem no contrafluxo de tantos desmandos e desumanidades. Sim, sabemos, a arte humaniza, enquanto a poesia nos liberta.

II – A poesia brasileira de hoje é tão vasta quanto o mundo que lhe dá moldura

Não há condições práticas de eu tratar da poesia brasileira do agora. O mundo, afinal, é vasto, e as editoras também são inúmeras e se esforçam, mensalmente, em colocar nas prateleiras alguns [bons] livros para se ler. Assim, diante da impossibilidade de abraçar o mundo com as pernas, eu falo de minha aldeia, uma província em muitos aspectos, mas não na arte que ela produziu/produz, nos séculos XX e XXI. Até bem pouco tempo eles levaram a melhor, e hoje? Embora a literatura também seja um tatame predominantemente masculina, vejo clara uma tendência em que elas ganhem mais espaço e logo, logo dominem a cena: elas falem, performatizem, escrevam, enfim, publiquem. Não se trata de uma “guerra dos sexos”, mas aponta-se um regozijo de leitores, que, de algum modo, ao lerem as novas escritoras, delas se tornem aprendizes.

Como não posso falar para além da minha aldeia, já o disse, trato das escritoras que habitam o lado oriental da Amazônia brasileira. Elas estão com tudo e, em poemas ou prosas, primam pela qualidade de bons textos, livros que circulam nas diversas mídias, das digitais às tradicionais. As filhas de Lilith, no contraponto de Eva, por aqui, são herdeiras de Eneida, Lindanor Celina, Sultana Levy e Dulcinéia Paraense, e mostram, a cada livro publicado, para que vieram. Cito algumas com o risco da injustiça: Wanda Monteiro, Giselle Ribeiro, Roberta Tavares, Shaira Mana Josy, Luzia Luluza, entre outras.


E é neste cenário de férteis colheitas que, dia desses, chegou-me às mãos um livro, belo e sugestivo; in-TEnSO. Refiro-me a Madalena/Magdalena, de Nathália Cruz, poeta de São Domingos do Capim, um dos municípios amazônicos de ocorrência do fenômeno da pororoca. Nathália reside na região metropolitana da capital paraense, onde faz carreira acadêmica; ela cursa doutorado em Letras na Universidade Federal do Pará; é licenciada em Letras pela Universidade da Amazônia e mestre em Educação pela Universidade do Estado do Pará; Nathália iniciou-se como ensaísta e, através de concursos literários, (re)fez-se poeta premiada. Deixou, faz tempo, de ser promessa; é poeta e ponto.

Como disse, o livro em discussão é bilíngue, escrito em português e espanhol, língua a qual a autora domina. Formato 23 cm x 23 cm, papel couchê, colorido. Ele contém fotografias do artista plástico Fabrizio Rodriguez. Editado pela Kazuá, de Salvador/São Paulo, é livro que apresenta formato singular, bem como tratamento gráfico e planejamento editorial acurado, assinado por Evandro Rhoden e José Lucas Costa. As fotos (que aqui denominarei de “imagens fotografizadas”) fazem um contraponto ao texto verbal, ressignificam a poesia e conduzem o olhar do leitor ao infinito anagrama do prazer, fruição na linha de um Roland Barthes. A concepção bartheana é ainda visível na ideia do “mostra-esconde-mostra” que Barthes entoa no canto da refinada eroticidade em Fragmentos de um discurso amoroso. Vamos à leitura?

III – Pré-textos: excitação para os olhos

O livro deve ser lido no seu todo significante, a partir, principalmente, das possibilidades de se conhecer esta jovem autora e seu projeto estético e político. Ademais, abracemo-nos o título, indício de tensão entre sagrado e profano, e que está em compasso com o que foi dito no início desta conversa, em relação ao que se está a produzir agora nessa Amazônia oriental. Madalena, explica nota introdutória, é a décima terceira apóstola de Jesus, embora ela não seja aceita como tal pelo cânone eclesiástico. A nota antecipa-se aos poemas (e talvez nem precisasse) e implodiu as regras, ampliou margens, e anuncia ao leitor: temos cá escritas madalenas, liliteanas, luzdelfoguinas, leiladizinizenses.

O livro da escritora paraense se refaz de modo a pensarmos como se o Novo Testamento apontasse para uma poética reescritura do Velho Testamento. Substitui-se “o olho por olho, dente por dente” pelo “amai-vos uns ao outros...”. Madalena, então, desprende-se de sua condição de substantivo e passa a ter forma adjetivada, embora não perca sua substância de referência: fêmea, ela seduz, e se impõe ante a toda norma do patriarcado, e dialoga com o Cristo, um hebreu sensível e à frente de seu tempo. Afora isso, ou talvez por isso, a autora optou por usar como epígrafe o livro de João, capitulo 8, versículo 10.

Madalena, o livro de poemas, insere-se na tradição ocidental ao mesmo tempo em que dela se afasta, pois a reinterpreta a seu modo, mediante recursos de novas linguagens que este livro (de poemas-imagens) explora como ponta de lança. Assim, o livro sagrado de hebreus e cristãos, a partir do título e epígrafes ali registrados, ganhou novo tônus, ressignificou-se. Trata-se de um caso bem específico da estratégia de escrita intertextual, modalidades de apropriação, modulações de citação, tom da reprodução, na linha de Mikhail Bakhtin, quando a escrita, ao mesmo tempo em que se renova, reitera um clássico, obrigando o leitor a uma reflexão acerca deste processo aparentemente simples.

Na tradição da poesia de autoria feminina é como se Nathália Cruz reinterpretasse, por exemplo, uma escritora que, talvez, lhe tenha servido de exemplo: Adélia Prado. Nathália, no entanto, amplia as possibilidades de ética e estética (que aqui andam lado a lado e não podem se apartar); sua escrita está atravessada de um tom de dilatação e latência dos sentimentos humanos que desestabilizam o leitor mais conservador e, assim, contribui para questionar tabus ligados à sexualidade e ao ethos feminino na cultura ocidental, a partir de um livro, a Bíblia, que, religioso, é também um manual de controle moral. Madalena, pode-se dizer, embora breve, explicita uma tensão entre sagrado e profano.

IV – Os textos: fricção, corpo a corpo, folha a folha

Um dos aspectos que mais chama nossa atenção é a capacidade que tem a poeta de lapidar suas vozes poéticas, em geral, subjetivas, de modo concentrado e sucinto. Os poemas são curtos, orgásmicos, e deslizam na curvatura dos olhos que reveem página a página, poema a poema, o côncavo e o convexo, sinuosas linhas que confabulam com as imagens fotografizadas. A expressividade dos “quadros fotografizados”, em certo momento, penso eu, competem com os textos verbais. Outra tensão, então, se estabelece: ora mirar a palavra, ora atentar para o fotografizado. Isto me faz lembrar, certa feita, o poeta e arte educador mineiro, Bartolomeu Campos de Queirós, que afirmou acerca da ilustração de Tadeu Lobato no livro Banho de Chuva (1990): “Tadeu demostra que uma imagem não deve ilustrar ou competir com o texto, mas tornar-se um outro texto, com várias possibilidades de leitura”. É o que me ocorre em Madalena, com o acasalamento, por vezes conflituoso, entre texto e imagem; verbo e retrato.

O poema mais longo, “Self Service”, insere o discurso da poesia no contemporâneo, instando uma máxima da expressão da antropofagia fêmea. O corpo da mulher a ela pertence, é uma luta que se intensificou com o feminismo burguês do ocidente, partir, salvo engano, dos anos 50 do século XX. Neste poema, talvez o mais valente e despudorado, sem rodeios, o verbo está no imperativo “Me coma”, que, repetidamente, faz eco de estrofe a estrofe. Aí resida o atravessamento didático e discursivo da repetição, que nos faz desconfiar que o eu lírico ali tem algo de professoral, e faz pensarmos nas máscaras poéticas de um texto desta monta. Vejamos: “Meu corpo/ é um prato/ que te serve/ a fio”. Portanto, nos jogos do amor, as armas da política fenotextual pode modificar-se conforme o momento de maior ou menor intimidade.

A metalinguagem, uma estratégia de expressão da poética desde o século XX, amplia-se aqui, considerando-se aquele projeto de “corpo de letra”, potencialmente erotizado, difundido por Roland Barthes, já aqui citado. Assim, o poema que mais me chama atenção é “Palo Santo”. Trata-se de um poema que carrega – embora o adjetivo anarquista destoe do todo – muitas possibilidades de leitura, mas fica a mim uma “filosofia de vida” do ser feminino desde as eras remotas da Idade Média: o desterro.

Quando a polissemia visita os poemetos de Nathália, o leitor ganha em possibilidades imaginativas e ocorre uma possibilidade maior de identificação. Leiamos o poema “Contrição”. Perceba-se que o último verso, ao mesmo tempo que parece reiterar as leis da submissão via controle religioso, faz a moral vigente implodir: “Paguei com a língua”. Pagar com a língua abre um leque de possibilidades diante da imaginação do leitor e da leitora.

IV – Morte prenunciada ou a rediviva fala fêmea?

Por fim, chegamos às ultimas páginas, nas quais a pequena morte se dá quando, pela excitação (explicitada ou sugerida), os corpos, em ânimo, se veem “empoderados” e, assim – femininos ou não –, eles tendem a chegar mais próximos do metafísico, ou da divindade: o orgasmo ou a “pequena morte” da língua francesa. Madalena é o contrafluxo, um livro ritualístico que denega o controle religioso, desmonta a Bíblia como normatividade e controle. E, reitero nesta resenha, as mulheres trazem para a poesia de agora a radicalidade da mudança, princípios de ética e estética, embrincados através da força de expressão que o mundo masculino, quando (re)conhece, teme e reprime. Madalena/Magdalena (Madalenas), pelas imagens e, sobretudo, pelas palavras, faz-se fuga e libertação. Se você é pudico ou pudica, leia-o, faça... Depois entre na primeira igreja e vá confessar-se. Livre-se, deste modo, de lhe atirarem a primeira pedra. Mas, se o fizer, leia para os agressores alguns poemas de Madalena.

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