O professor e pesquisador Willi Bolle é conhecido por seus trabalhos sobre Walter Benjamin, Guimarães Rosa e Dalcídio Jurandir. Boca do Amazonas: sociedade e cultura em Dalcídio Jurandir é seu livro mais recente.
Nesta entrevista, Willi revela que conheceu a obra de Dalcídio em 1998 ao participar da banca de mestrado de Paulo Nunes. E é o próprio Paulo quem conduz esta entrevista com Willi.
Mais que uma entrevista, uma boa conversa entre dois velhos conhecidos que compartilham um interesse em comum na literatura amazônica: Dalcídio Jurandir.
1) Professor Willi Bolle, gostaria de iniciar esta conversa pedindo que o senhor resumidamente se apresentasse. Quem é Bolle e como ele “veio dar as costas” no Brasil?
Willi: Sou professor titular sênior de Literatura na USP. Nasci em março de 1944 na Alemanha, perto da capital Berlim. Como estudante de Letras e História, vim para o Brasil em 1966, para pesquisar este país à luz do romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Sempre senti muita atração pela geografia e pelas viagens. Tanto assim, que o meu principal projeto de pesquisa é uma topografia cultural do Brasil: da metrópole/megacidade através do sertão até a Amazônia. Esse projeto se concretizou com esta trilogia de livros: Fisiognomia da Metrópole Moderna: representação da história em Walter Benjamin (1ª ed., 1994, 3ª ed., 2022); grandesertão.br – o romance de formação do Brasil (2004); e Boca do Amazonas: sociedade e cultura em Dalcídio Jurandir (2020).
2) Professor, seu trabalho de interpretação do Brasil passa pela leitura de alguns autores que parecem fundamentais para entendermos a complexidade de um país multicultural como o nosso: Euclides da Cunha, Guimarães Rosa são escritores que o senhor estuda. Este Boca do Amazonas: sociedade e cultura em Dalcídio Jurandir, mergulha (verbo bastante sugestivo em se tratando de Amazônia) da obra de Dalcídio Jurandir; de que modo o romance deste autor pode nos ajudar a entender a sociedade e a cultura brasileiras?
Willi: Sim, o meu método de interpretação do Brasil é realizado por meio da análise e do comentário de autores exemplares. No caso das metrópoles modernas, o principal autor é Walter Benjamin, com seus estudos sobre Paris, “a capital do século XIX”; Berlim, a cidade de origem dele e também a minha; e Moscou, pouco depois da Revolução Russa de 1917. Eu “revelo” os retratos benjaminianos de metrópoles europeias à luz da megalópole brasileira São Paulo, num diálogo com autores como Mário de Andrade, Ignácio de Loyola Brandão, Augusto de Campos e também Guimarães Rosa. Este, num dado momento do seu romance, fala da migração dos habitantes do sertão para as grandes cidades, o que é um fato fundamental da história do Brasil moderno. No meu livro grandesertão.br mostro especialmente que o romance de Rosa é uma reescrita crítica de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que compôs a obra matriz dos retratos do Brasil. Euclides, além de focalizar o planalto central do país, retratou também a Amazônia, numa série de ensaios com o título expressivo À margem da história. De fato, esta continua sendo a forma como a Amazônia está sendo vista até hoje pelas populações e os intelectuais das regiões Sudeste e Sul do Brasil. Uma prova dessa marginalização é a recepção da obra de Dalcídio Jurandir, que tem ficado, desde o início, à margem do cânone da literatura brasileira. Quando, depois de ter concluído os meus livros sobre a metrópole e o sertão, eu procurei um escritor para estudar a Amazônia, optei pelo Ciclo do Extremo Norte, porque nesses dez romances o autor mergulha com um máximo de intensidade e concretude na história econômica, política e social da Amazônia ocidental e nos hábitos culturais de seus habitantes. Para informar que se trata da região no entorno do delta do grande rio e valorizar o fato de Dalcídio ter deixado um amplo e memorável registro das falas da população, eu dei ao meu livro um título que resume esses dois sentidos: Boca do Amazonas.
3) O senhor, neste Boca do Amazonas..., se debruça sobre o chamado Ciclo do Extremo Norte: tramas, roteiros, linguagens, e chega mesmo a desenvolver um retrospecto dos romances de Dalcídio. Os leitores sudestinos têm interesse em conhecer a Amazônia para além dos estereótipos veiculados pela grande mídia? A literatura é uma fonte segura de conhecimento da região Norte?
Willi: Apesar de a Amazônia ocupar um lugar à margem do interesse da população do Sudeste, a sua presença na grande mídia, nacional e internacional, tem crescido nos últimos anos, principalmente por causa do enorme aumento da destruição da floresta amazônica – com forte repercussão nas mudanças climáticas no Brasil e no mundo. As informações na mídia podem estimular a procura por obras literárias produzidas na e sobre a Amazônia.
Um outro estímulo importante são os relatos de viagem e os estudos etnográficos. Foi com base nisso que organizei, juntamente com a professora Edna Castro (UFPA) e o professor Marcel Vejmelka (Universidade de Mainz), a coletânea de ensaios Amazônia: região universal e teatro do mundo, que foi publicada em 2010 numa versão brasileira e numa versão alemã. O ponto de partida foi uma viagem na qual eu refiz, em 2007, o percurso d’ “A travessia pioneira da Amazônia”, realizada em 1541/1542 pela tropa de Francisco de Orellana e narrada por Gaspar de Carvajal. Além desse meu ensaio, os demais onze textos do livro tratam de outros viajantes, de etnógrafos, dinâmicas econômicas, políticas e sociais na Amazônia contemporânea, e também de obras literárias (inclusive Dalcídio Jurandir) e de um evento de teatro musical.
Sem dúvida, a literatura é uma sólida fonte de conhecimento da região Norte. Desde escritores pioneiros como Inglês de Souza e José Veríssimo, no século XIX, até autores que são nossos contemporâneos como Márcio Souza e Milton Hatoum. Vem também ao caso lembrar o nome de um grande crítico literário, que nasceu e morava em Belém e cuja obra eu conheci através de jornais de São Paulo, desde a minha chegada em 1966: Benedito Nunes. Foi por causa de suas publicações sobre a obra de Guimarães Rosa que fui visitá-lo em 1967, na minha primeira viagem a Belém. E last but not least, merece realce especial o fato de que, nos anos mais recentes, surgiram autores e autoras indígenas – como Ailton Krenak, Daniel Munduruku e Eliane Potiguara –, que enriquecem significativamente a literatura brasileira.
4) Ao tratar de Belém em Dalcídio Jurandir, o senhor transita entre a ideia de “metrópole equatorial” e “planeta favela”. Qual a Belém mais expressiva que o leitor Willi Bolle reconhece na obra de Dalcidio? Que experiências o senhor tem a partilhar com seus leitores, leitoras e alunos e alunas?
Willi: Eu tive o primeiro contato com a obra de Dalcídio Jurandir em 1998, graças a você, caro Paulo Nunes; pois naquele ano fiz parte da banca de seu mestrado, que era sobre Chove nos campos de Cachoeira. Em 2007 integrei também a banca de sua tese de doutorado, cujo tema é Belém do Grão-Pará. Eu me dediquei ao estudo detalhado desse romance em 2008, e a partir de 2009 trabalhei com os cinco romances cujo enredo se passa na periferia da cidade.
A primeira experiência com Belém que tenho a partilhar é a sua função como metrópole da Amazônia. Depois de ter estudado metrópoles europeias e a metrópole São Paulo com categorias de Walter Benjamin, resolvi aplicar o método dele à “metrópole equatorial” Belém. Assumindo o papel de um flâneur benjaminiano, apresento num dos capítulos do meu livro – por meio de fotografias comentadas – um panorama das principais épocas da história de Belém: desde a fundação da cidade em 1616 até os tempos do auge da borracha e do declínio; e depois, desde a reestruturação da economia nos anos 1950 até o surgimento da moderna Belém vertical, mas também desigual, do nosso presente. Complementei essa visão “de fora” com a visão “de dentro” do escritor local Dalcídio. Com informações detalhadas do seu romance apresento os diferentes territórios sociais de Belém, ou seja, as casas e os bairros onde se passa o enredo do protagonista Alfredo: uma moradia de classe média, um sobrado da alta sociedade, uma casa de operários e o olhar dele sobre a periferia.
A segunda experiência com Belém que tenho a partilhar é a de um trabalho coletivo que realizei entre 2009 e 2014 com um grupo de professores e alunos de uma escola pública de ensino médio no bairro de Terra Firme. Durante esses anos elaboramos adaptações cênicas e fizemos apresentações teatrais dos cinco romances de Dalcídio que têm como cenário a periferia: Passagem dos Inocentes, Primeira manhã, Ponte do Galo, Os habitantes e Chão dos Lobos. Os temas que colocamos em primeiro plano são: iniciação à periferia, o ensino no ginásio e a escola da rua, exclusão social e luta pelo espaço, e a vida cotidiana na favela. A realização desses trabalhos nos fez chegar à conclusão que um dos méritos da obra de Dalcídio Jurandir é ter superado os parâmetros do regionalismo tradicional com a apresentação de um tema de relevância universal: os problemas vividos no mundo inteiro pelos habitantes das favelas. Por isso dei ao capítulo central do meu livro o título “A periferia de Belém – uma amostra do nosso ‘planeta favela’”, usando como referência o livro Planeta favela (2006) do geógrafo e urbanista Mike Davis.
5) Incompreensão e luta de classes, crítica ao excludente sistema de educação formal do Brasil, declínio econômico e superação social, constituem chaves de leitura propostas pelo senhor para ler o romance de Dalcídio. Haveria outros caminhos para interpretar esse Brasil dalcidiano?
Willi: Um caminho importante que Dalcídio Jurandir nos ensina para conhecer e interpretar melhor a Amazônia – e a partir daí também o Brasil como um todo – é prestar atenção às falas das pessoas que vivem à margem da sociedade. Nesse sentido, realcei, no capítulo final do meu livro, a função emancipatória dessas falas.
Eis alguns exemplos: No romance inicial, Chove nos campos de Cachoeira, o menino Alfredo implora: “Mamãe, me mande pra Belém! Quero estudar!” No romance Marajó, a cabocla expulsa de um falso projeto social denominado “Felicidade”, usa a tabuleta com esse nome ironicamente como remo. Em Ponte do Galo, a mãe, que relata que na sua vila foi nomeado para prefeito da polícia um rematado bandido e assassino, dá a Alfredo este conselho: “Desforra de pobre é estudar!”
Com esse tipo de falas, o escritor reúne documentos da memória cultural do povo e do desejo das pessoas marginalizadas de elas também se tornarem sujeitos da História.
6) Euclides da Cunha, em À margem da História, propõe uma forma de reconhecimento e representação da Amazônia, que marcará época. Há algo de Euclides na representação que Dalcídio faz do Marajó, Belém e do Baixo Amazonas?
Willi: Uma referência histórica comum na representação da Amazônia por Euclides da Cunha e Dalcídio Jurandir é a época da borracha. Mas há uma importante diferença: enquanto Euclides descreve aquela época no seu auge, na década inicial do século XX, Dalcídio a retrata no seu declínio, focalizando especialmente a década de 1920 a 1930.
Um tema comum dos dois escritores é tratar das condições de vida dos trabalhadores braçais, especialmente dos seringueiros. Euclides, em À margem da História, denuncia a situação do seringueiro como a de um “homem que trabalha para escravizar-se”. Em Dalcídio, essa condição de trabalho escravo é descrita sobretudo no romance Marajó. Também no romance Ribanceira, cujo cenário é a vila de Gurupá, no Baixo Amazonas, ele apresenta a situação da classe trabalhadora na época da borracha. E no romance Belém do Grão-Pará, temos a personagem emblemática da empregada Libânia, que é explorada pela família Alcântara, e uma cena no Ver-o-Peso, onde uma senhora da alta sociedade está comprando uma adolescente como mercadoria para executar pesados serviços domésticos.
O tema das fortes desigualdades sociais é complementado por ambos os escritores pela descrição dos conflitos relacionados às propriedades de terra. Euclides mostra isso nos seringais, salientando as enormes diferenças entre os donos e os seringueiros, que realizam trabalhos escravos. Na obra de Dalcídio, esse problema aparece especialmente nos três romances iniciais, que se passam na ilha de Marajó. Em Chove nos campos de Cachoeira, é retratado o Dr. Lustosa, que pretende comprar todos os campos em torno da vila, com a proposta hipócrita de “proteger os pobres” e de atuar para “o bem comum”. No romance Marajó, aparece mais uma proposta demagógica, a de Missunga, que quer instalar a fazenda “Felicidade”. E em Três casas e um rio são narrados os crimes do latifundiário Edgar Meneses, que roubou as terras da família da moça Andreza e assassinou o pai e o irmão dela. O tema da propriedade de terras aparece também no título do romance Chão dos Lobos, que se refere a uma família de latifundiários que exploram os habitantes da periferia de Belém.
Merece ser mencionada ainda a visão da Amazônia como um paraíso. Ela aparece no título inicial da reunião dos ensaios amazônicos de Euclides: Um paraíso perdido. O próprio escritor desmontou essa imagem de desejo, com sua descrição do “paraíso diabólico dos seringais”. Dalcídio pratica uma estratégia semelhante no romance Três casas e um rio, no qual relata o sonho do filho de latifundiário Edmundo Meneses de criar a fazenda Marinatambalo, “tipicamente marajoara”, na qual os vaqueiros seriam “felizes na sua vida primitiva”, “exigindo cada vez menos do que necessitavam”. Esse sonho é desmontado no final da história, quando Edmundo desaparece, caminhando em direção a um mondongo.
7) Das práticas de leitura que se fizeram com a obra do escritor de Ponte do Galo desde o emblemático ano de 1996, quando a Universidade da Amazônia realizou o seminário que representou, a meu ver, uma mudança nos recentes estudos dalcidianos, a sua experiência na Terra Firme é algo que causa impacto. Em que medida, seus estudos sobre a fisiognomia de Walter Benjamin e sobre a Estética da Recepção e de dramaturgia iluminaram aquela experiência com o romance de Dalcídio Jurandir junto aos professores e estudantes da periferia de Belém?
Willi: A minha experiência com professores e alunos do bairro de Terra Firme em Belém, entre 2009 e 2014, de realizar adaptações cênicas e apresentações teatrais dos romances de Dalcídio que se passam na periferia dessa cidade, foi inspirada por duas leituras dramáticas anteriores.
A primeira foi um roteiro de leitura que criei no final de 2003 a partir de um episódio-chave do romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. É a cena em que o bando de jagunços se detém numa das propriedades do latifundiário seu Habão, que cobiça os jagunços como escravos. É isso que motiva o jagunço Riobaldo a fazer um pacto com o Diabo, com o objetivo de assumir a chefia do bando, com o resultado final de ele próprio tornar-se um poderoso latifundiário. Realizei essa leitura dramática com um grupo de alunos da USP durante os anos de 2004 a 2006, em 12 lugares diferentes: desde o Morro da Garça, em Minas Gerais, até São Paulo durante o evento da Virada Cultural; e de lá, até a cidade de Berlim e a periferia de Paris – sempre com a colaboração de uma dúzia de participantes locais.
A segunda leitura dramática foi realizada em 2007, em Ponta de Pedras, na ilha de Marajó, durante um dos encontros do IFNOPAP. Nessa ocasião fizemos uma adaptação cênica de vários episódios do romance Marajó. O que me ajudou a realizar esses trabalhos teatrais foi minha formação de ator, na Escola de Arte Dramática da USP, entre 1983 e 1986.
Em 2017, elaborei com o grupo de Terra Firme uma leitura dramática complementar, na qual incluímos cenas dos demais romances, desde Chove nos campos de Cachoeira até Ribanceira. A leitura foi filmada por Alan Kardek Guimarães e está disponível para ser assistida no youtube. O que nos inspirou nessa elaboração foi o exemplo dos Miguilins, o grupo de contadores das estórias de Guimarães Rosa, criado na cidade de origem dele, em Cordisburgo – Minas Gerais. Qual seria o nome mais apropriado a ser dado ao nosso grupo de contadores de Dalcídio Jurandir? A solução não surgiu nem dos estudos sobre a fisiognomia de Walter Benjamin nem da Estética da Recepção. Ela surgiu da conversa com um destacado estudioso da obra de Dalcídio Jurandir. Ele sugeriu o nome “Os Tucumãs”. Pasme, querido entrevistador: o inventor desse nome foi Paulo Nunes!
SOBRE O ENTREVISTADOR
Paulo Nunes é professor da Universidade da Amazônia, onde atua na graduação em Letras, mestrado e doutorado em Comunicação, Linguagens e Cultura da UNAMA; é um dos coordenadores do Grupo de Estudos interinstitucionais Narramazônia: narrativas contemporâneas da Amazônia Paraense (UFPA/UNAMA); é um dos coordenadores do projeto de Pesquisa Academia do Peixe Frito: interfaces jornalismo e literatura (UNAMA/UFPA). É um dos coordenadores do projeto de pesquisa interinstitucional Epístolas Poéticas: a correspondência entre o romancista Dalcídio Jurandir e Maria de Belém Menezes (PPGED-CUMA-UEPA e PPGCLC-UNAMA). É pesquisador colaborador do projeto Amazônia entre Narrativas e Interculturalidade pelas Trilhas do Trem (PPGCOM-FACOM-UFPA); integrante do grupo de estudos e pesquisa Makunaíma: Literatura, arte, cultura, história e sociedade na Amazônia, Brasil e América Latina (PPGLetras-UFPA). Curador do acervo do escritor Dalcídio Jurandir do projeto de leitura e acervo bibliográfico Moronguetá, ligado ao Fórum Landi (FAU-UFPA).Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Pará.
PODCAST
Em abril de 2020, a Voz da Literatura dedicou um episódio especial de seu podcast a Willi Bolle, com base no livro Arte da Aula, publicado pelas Edições SESC SP em 2019. A obra reúne 10 relatos de professores sobre atuação docente na universidade. Entre outros, participam do volume Alcir Pécora, Ataliba de Castilho, Marilena Chauí, Renato Janine Ribeiro. Este episódio do podcast da Voz da Literatura comenta e recupera trechos do relato do professor Willi Bolle (USP).
Acesse: #5 | Arte da Aula: Willi Bolle
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