Artigo raro de Paulo Leminski publicado originalmente no caderno "Folhetim" da Folha de São Paulo em 1982.
Consolem-se os candidatos.
Os maiores poetas (escritos) dos anos 70 não são gente.
São revistas.
Que obras semicompletas para ombrear com o veneno e o charme pocromático de uma “Navilouca”? A força construtivista de uma “Pólem”, “Muda”, ou de um “Código”? O safado pique juvenil de um “Almanaque Biotônico Vitalidade”? A radicalidade de um “Pólo Cultural/Inventiva”, de Curitiba? A fúria pornô de um “Jornal Dobradil”? E toda uma revoada de publicações (“Flor do Mal”, “Gandaia”, “Quac”, “Arjuna”), onde a melhor poesia dos anos 70 se acotovelou em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à Vida, ao Sucesso ou ao Nada.
POESIA, UMA COISA PRA NADA
Lavra, faz tempo, um “boom” poético, nestas partes pudendas, descobertas por Cabral. Livros. Livretos. Folhas. Folhetos. Grafitis. Gravetos. Vagas. Vogas. Ondas. E, sobretudo, poetas.
Índice, eu acho, de uma insatisfação com a(s) linguagem(ns) vigentes e seus limites.
Afinal, se a poesia tem algum papel nesta vida é o de não deixar a linguagem estagnar, deitada em berço esplêndido sobre formas já conquistadas. Sobre clichês. Sobre automatismos. Papel de renovar ou revolucionar o como do dizer. E, com isso, ampliar o repertório geral do o que dizer. Formas novas, qualquer malandro percebe, geram conteúdos novos.
Para a poesia, alargar as fronteiras do expressável. Um poema – um dia, respondi a um repórter que queria saber – é o contrário de uma notícia de jornal.
Uma notícia de jornal diz coisas previsíveis e, portanto, possíveis: Irã Sequestra Corpo Diplomático dos Estados Unidos. URSS Invade o Afeganistão. Direita Vence Eleições em El Salvador. Recrudesce a Luta no Oriente Médio.
Já a poesia fala de coisas que ninguém previa, impossíveis, nadas:
“Tinha uma pedra no meio do caminho” (Drummond).
Quem diria que um súbito obstáculo iria sustar a marcha do bardo? “A Carne é Triste e eu Li todos os Livros” (Mallarmé). Ninguém poderia imaginar que a carne e os livros poderiam sair juntos na mesma notícia. Querem mais uma não-tícia? “Tu pisavas nos astros distraídas” (Orestes Barbosa). Ora, vamos e venhamos, mas essa da nega pisar em estrelas é dose. E distraída, ainda por cima! Não param aí os absurdos. Quando você menos espera, vem um português magrinho, bêbado, que diz, detrás de um bigodinho Chaplin-hitleriano: “O poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente.” Aí é demais. O desrespeito pela santidade da lógica e da realidade é de molde a fazer qualquer leitor, medianamente instruído, a torcer o nariz. Nisso, o Augusto de Campos chega e encerra o assunto, mandando aquele abraço para o espaço cósmico: “Abra a janela e veja/o pulsar quase mudo/abraço de anos-luz. Abraço de anos-luz! Chega. Eu passo.
É pra isso que poesia existe. Pra dizer o que não se diz. E só assim aumentar o campo dos prováveis do dizer. Para bem de todos, da poesia à prosa. Subversivamente.
Nos anos 70, a poesia que mais fez isso foi a que esteve nas revistas. As revistas são a obra-prima da poesia brasileira, na década que acabou de passar. Mas não pára. Porque na vida dos signos superiores, gratuitos. O que passa, fica. E só fica o que passou, forte.
O subversivo dessa linguagem casou, de véu e grinalda, com a era das nanicas jornalísticas (“Pasquim”, “Movimento”, “Coojornal”, “Em Tempo”, “Versus”, “Repórter”), e crítico-humorísticas (“Ovelha Negra”, “Raposa”, “Risco”, “Pato Macho”), alternativas-quixote para o sanchopança do jornalismo oficial, acadêmico e rotineiro, conformado e auto-satisfeito.
Jorraram nanicas na Idade das Trevas, sob a sombra do AI-5. Foi a idade da imprensa pobre, “povera”, precária, aquém dos padrões empresariais da banana-maçã (ou ouro) da imprensa vigente. E muito além dela quando à independência de opiniões, contacto com as bases, contundência crítica e originalidade criativa. As migalhas de dinheiro que caíram das mesas da fartura do “milagre brasileiro”, talvez, consigam explicar alguma coisa da facilidade com que os pequenos jornais e revistas proliferaram nos anos 70.
Com a alta do petróleo e a carestia geral, aventuras como as nanicas começaram a se tornar, financeiramente, menos prováveis. As bombas nas bancas, intimidando o intermediário, agravaram ainda mais o quadro clínico das nanicas. Quantas vão bem das pernas hoje?
NANICAS NA PRODUÇÃO
Par e passo com as nanicas de consumo (tipo “Pasquim”), a geral e as arquibancadas (mais estas que aquela) assistiram ao desfile das nanicas de produção, onde os poetas mais jovens procuraram criar novos processos e novas formas de dizer, dizendo coisas novas. Enfim, isso que chamam por aí de poesia. Com o passamento dos suplementos literários nos jornais, que marcaram os anos 50/60, a minoritária linguagem da poesia buscou novos leitos e novos leitores para fazer correr seu leite (essa foi de lascar, hein, Régis?).
Pequenas revistas, atípicas, prototípicas, não típicas, coletivas, antológicas, representando um grupo ou tendência (“formalistas”, pornô, “marginais”), onde predominou a faixa etária dos 20 aos 30 anos. Em comum: a auto-edição (samizdat), todo mundo juntando grana para comprar a droga da poesia.
Antologias: essa coletivização do aparecer (se não do fazer) corresponde a uma politização, mesmo que não explícita. E a escolha da revista como veículo (mais que um jornal, mas menos que um livro), a uma posição estético-filosófica: a eleição do provisório, a arte e a vida no horizonte do provável, a renúncia e o repúdio ao eterno por parte de uma geração que cresceu à sombra do apocalipse. Talvez não haja mais tempo para a glória. Só para o sucesso. Assim como não há mais lugar para a emoção. Só para o suspense. Entre essas nanicas de produção, dá pra distinguir muito bem entre umas, de design de nível baixo, e outras, com um repertório mais alto de informação plástico-visual. Aquelas com programação visual nível gráfico-técnico inferior à média das publicações correntes, meros suportes-excipientes de poemas, impressos corriqueiramente, sem a consciência da plasticidade do texto-página. E aquelas que, de certa forma, herdaram o apuro industrial e o elevado repertório gráfico-visual das revistas da Poesia Concreta paulista nos anos 50/60 (“Noigrandes”, “Invenção”).
Com os senhores, “Navilouca”, “Pólem”, “Código”, “Poesia em Greve”, “Artéria”, “Pólo Cultural/Inventiva” (de Curitiba), “Jornal Dobradil”... Nosso convidado de hoje tem um nome estranho: “Qorpo Xtraño”.
Aproveito para grafar assim o nome da revista que já se chamou “Qorpo Estranho”, na esperança de que, um dia, por força de tanta estranheza, assim seja seu nome. Ou pior. Ou melhor: mais “Xtraño” ainda.
To make a long story short, todo esse papo foi para mor de dizer que está siando, lindo, o n.º 3 do “Corpo (ou Qorpo?) Estranho”, uma das nanicas de produção mais competentes e sofisticadas dos 70 (o n.º 1 é de 76). Se os dois primeiros números foram auto-editados, agora, pintou uma editora (a Alternativa, de São Paulo, claro), com jeito e peito para bancar a iniciativa.
E assim “Corpo Estranho” (e, com ele, as nanicas de produção) passou do underground para o overground, a material viabilidade editorial do difícil. No leme: Júlio Plaza e Régis Bonvicino respondem pelo design do banquete e pelas iguarias: a recriação de um conto de vanguarda do beatle John Lennon, fragmentos inéditos do Diário Confessional de Oswald de Andrade, poemas inéditos de Haroldo de Campos, um depoimento de Arrigo Barnabé, um texto do cubano Severo Sarduy, o poema trans-verbal Poética/Política do próprio Júlio Plaza, traduções de Tristan Corbière, uma entrevista com o lendário Rogério Duarte e inúmeras outras atrações da pesada.
{n. 4 | agosto | 2018}
{ } um especial agradecimento a Alice Ruiz, Aurea Alice Leminski e Estrela Ruiz Leminski por autorizarem a publicação.
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