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O trabalho pedagógico com os clássicos literários no Ensino Médio público brasileiro

Atualizado: 16 de jun. de 2021

por Adriana Pin*


Ao considerarmos o currículo de Literatura no Ensino Médio público brasileiro, podemos perceber dois aspectos relevantes para o trabalho pedagógico: 1) a sistematização dos textos, organizados em movimentos ou períodos literários, numa ordem cronológica, com “contextualização histórica” das diferentes produções; 2) a enorme distância entre a linguagem, geralmente em variante culta, e temáticas complexas, principalmente no que se refere às obras literárias dos séculos XII ao XIX em relação ao contexto de adolescentes do século XXI.


Tal sistematização apontada no item 1 consta nos currículos de muitas escolas e, consequentemente, é reproduzida nos livros didáticos, em sua maioria, da seguinte forma: no 1º. ano, estudam-se: Trovadorismo, Humanismo, Classicismo, Literatura de Informação, Barroco e Arcadismo; no 2º. ano: Romantismo, Realismo, Naturalismo, Impressionismo, Parnasianismo e Simbolismo; e no 3º. ano: Pré-Modernismo, Vanguardas europeias, Semana de Arte Moderna, Modernismo (1ª. e segunda gerações), Pós-Modernismo e Literatura contemporânea. Todo esse conteúdo é proposto para ser trabalhado, simultaneamente e em diálogo, com outros conteúdos relacionados à Língua(gem) e à Produção de texto.


Embora toda essa organização didática busque facilitar o trabalho pedagógico do professor e a aprendizagem do estudante, há duas questões a serem consideradas. A primeira, que não teremos como desenvolver aqui, diz respeito à (im)pertinência teórico-metodológica da própria ideia de “períodos literários”, no âmbito mesmo dos Estudos especializados. A segunda, que focalizaremos neste texto, concerne a uma grande dificuldade que surge dessa interação: como fazer com que adolescentes de hoje possam produzir sentidos para textos tão antigos, escritos numa linguagem tão distante de sua realidade? Como levá-los a ler e a interpretar essas obras de maneira que isso contribua para o desenvolvimento da escrita, da oralidade, do senso crítico e, consequentemente da comunicação desses alunos? No cotidiano escolar e das aulas de Literatura, essa tarefa se apresenta como um desafio para boa parte dos professores de Literatura.


Diante de tal quadro, é possível refletirmos e buscarmos algumas alternativas para esses questionamentos e desafios. Tais períodos literários costumam ser “ilustrados” nos currículos e nos livros didáticos por obras literárias representativas, que terminam por constituir o que chamamos de “cânone escolar”. Defendemos, aqui, que não é pela presença no cânone escolar em si mesmas que devam ser trabalhadas, mas por sua natureza clássica. Um primeiro movimento para avançarmos nessa busca pode ser feito a partir da própria natureza desses textos, a partir da sétima proposta de definição de clássicos, apontada por Calvino (2000, p. 11):


Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixavam na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).


Os clássicos literários são aquelas obras que conseguiram romper as barreiras do tempo, tornando-se atuais para o leitor contemporâneo. São textos que ainda conseguem dialogar com o presente. Contudo, esse caráter de atualidade pode não ser tão fácil de ser percebido pelos estudantes do Ensino Médio. Nesse sentido, a mediação do professor de Literatura se torna crucial para que isso ocorra, o que requer planejamento, ancorado numa formação acadêmica de qualidade e no hábito de leitura desse docente, além de condições adequadas de trabalho, como uma boa biblioteca na escola, tempo para estudo, recursos didáticos e tecnológicos, dentre outros, para que o professor possa estabelecer diálogos entre essas obras clássicas e outras artes, outros textos e contextos. Conforme Marsiglia e Della Fonte:


Por mais que seja atravessada pela sua datação histórica e localização espacial, a obra clássica permite diálogos entre as diferentes obras ao longo da história. Assim, ela supera sua temporalidade e seu espaço (sem deixar de trazer junto suas marcas históricas e locais) e carrega junto a si as leituras realizadas por cada geração de leitores. No contexto desse diálogo, quanto mais se lê um clássico, mais ele apresenta algo de inédito e inesperado. (2016, p. 24)


Nesse sentido, as autoras vão ao encontro do que apresenta Calvino (2000, p. 11) na sexta proposta de definição sobre os clássicos: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.”. Tomando a natureza dos clássicos, a cada geração, em cada época, estes sempre terão algo a dizer. Para exemplificarmos tal especificidade, tomemos a obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. No capítulo XIII (Capitu), Bentinho, adolescente (15 anos), vai até a casa de Capitu (14 anos), quando a surpreende riscando o muro. Ao perceber que Bentinho tentava ler o que estava escrito, Capitu tenta apagar, mas não a tempo que ele não leia: “Bento Capitolina”. Tanto para um adolescente da segunda metade do século XIX como para outro do século XXI, esse trecho diz algo, esses leitores conseguem dialogar com ele, mostrando que Bentinho e Capitu estavam afetivamente próximos nessa fase da narrativa. Ler, por exemplo, esse capítulo em aula, pode ser um bom começo de mediação da leitura desse clássico para os estudantes do 2º. ano do Ensino Médio, a fim de que o texto seja lido integralmente e outros aspectos da obra sejam abordados, como:


[...] pensamentos predominantes na época, como o Determinismo e Positivismo; a condição da mulher no século XIX e a concepção de família; a organização da sociedade, a estética do Realismo; a linguagem utilizada naquele tempo; o estilo do escritor Machado de Assis, entre outros, [...] tendo a leitura da obra literária sempre como ponto de partida e como centro e referência de todo o estudo. (PIN, 2019, p. 240)


Mas há outras possibilidades, como trabalhar a versão em quadrinhos, ou pedir que os alunos leiam primeiro a obra Ciumento de carteirinha, de Moacyr Scliar, a qual estabelece uma intertextualidade com o clássico, para depois lerem o texto original. No entanto, de acordo com Calvino (2000, p. 12):


A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário.


A importância de se tomar os clássicos literários como centralidade no ensino de literatura no nível médio da educação básica, considerando o currículo, sustenta-se na perspectiva da Pedagogia histórico-crítica. Segundo Saviani (2008, p. 18): “Ora, clássico na escola é transmissão-assimilação do saber sistematizado. Este é o fim a atingir. É aí que cabe encontrar a fonte natural para elaborar os métodos e as formas de organização do conjunto das atividades da escola, isto é, do currículo.”.


Saviani destaca que a escola é um espaço de acesso ao conhecimento elaborado, e que sua função é transmitir os conteúdos mais relevantes, ou seja, o trabalho do professor não é reproduzir o pensamento do aluno, mas sim convocar este a sair do lugar onde está. Existem textos que não necessitam da mediação do professor, pois facilmente são compreendidos pelos alunos. Já as obras do currículo de Literatura do Ensino Médio necessitam de um trabalho adequado do professor, com formação na área, uma vez que possibilitam uma interpretação profunda da realidade, do mundo e da própria existência, contribuindo significativamente para o desenvolvimento da escrita, do raciocínio e do senso crítico.


Entretanto, também é possível, nesse trabalho de mediação, partirmos de textos de outras culturas para chegarmos ao erudito, como abordar, inicialmente, o folheto de cordel “O castigo da soberba”[1] da cultura popular, para depois ser lido o Auto da barca do inferno, de Gil Vicente (Humanismo) no 1º. ano do Ensino Médio, ou ainda orientar os alunos a produzirem uma adaptação do original, atualizando os personagens, cujo texto certamente conterá traços da cultura popular e da cultura de massa, para finalmente ser encenado. O saber popular pode ser trabalhado como base e ponto de partida e ser valorizado pela cultura erudita nesse movimento. Todavia, não podemos perder de vista que: [...] “a importância política da educação reside na sua função de socialização do conhecimento. É realizando-se na especificidade que lhe é própria que a educação cumpre sua função política.” (SAVIANI, 2003, p. 88). Portanto, promover e mediar a leitura dos clássicos literários na Educação básica pública brasileira é fazer com que isso não seja um privilégio da classe dominante, mas sim democratizar o conhecimento.

 

ADRIANA PIN, doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES, Campus São Mateus). E-mail: adriana.pin@ifes.edu.br

 

nota

[1] Obra recolhida por Leonardo Mota junto ao cantador Anselmo Vieira de Sousa (1867-1926) (cordelparaiba.blogspot.com, 2014).


referências

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.


MARSIGLIA, A. C. G.; FONTE, S. S. D. A educação escolar e os clássicos literários: considerações a partir da pedagogia histórico-crítica e da psicologia histórico-cultural. Revista Brasileira de Alfabetização. v. 1, n. 4, p. 19-34, jul./dez. 2016.


PIN, Adriana. Literatura no Ensino Médio: caminhos para se promover a leitura dos clássicos brasileiros. Revista Contexto/UFES, Vitória, n. 36, p. 239-253, 2019/2. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/contexto/article/view/28267 Acesso em: 28 mar. 2021.

SAVIANI, D. Escola e democracia: polêmicas do nosso tempo. 36. ed. Campinas: Autores Associados, 2003.


______. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 10. ed. Campinas: Autores Associados, 2008.


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