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O sentido explícito

por Adalberto Müller*

(Texto originalmente publicado pelo autor no Facebook, em 10 de fevereiro de 2021.)

Ontem li aqui um texto elogiando uma autora de sucesso que ainda não li. Esperava lê-la, mas depois de ler o texto senti menos vontade de lê-la. Pelo que entendi, trata-se de um romance que expõe as misérias da condição feminina, mas de modo elegante, "preciso", como diz o leitor/crítico. A certa altura, ele elogia a "justeza da linguagem, que não afrouxa nenhum momento, valendo-se inclusive de sentidos lacunares onde pulsa latente a quintessência do sentido explícito". Foi a partir daí que entendi por que não me interessou a referida autora nem muitos dos romances de sucesso de hoje.

Sou um cara antiquado. Me formei lendo Dostoiévski e Cervantes, e depois G. Rosa e Clarice Lispector, autores que escrevem sobre os abismos da alma humana e sobre a complexidade das relações sociais (ai, Ana Karênina!). Em nenhum deles se encontra a "quintessência do sentido explícito". O narrador de Cervantes, por exemplo, começa dizendo se não sabe se o seu personagem existiu, e a certa altura atribui a história a um autor árabe mentiroso. A saga de Riobaldo é a de um homem tentando entender uma paixão proibida em meio a uma guerra devastadora, e um suposto pacto com o diabo. Nada é explícito. A polifonia de vozes de Os Irmãos Karamázov (ou de Lavoura Arcaica) coloca o leitor numa sinuca sem fim. Lispector simplesmente leva o leitor à morte do sentido, para renascer na vida palpitante do grito, do sussurro, do que não tem língua. Nada é "preciso" e justo em Lispector. Tudo é sujo de sem-sentido, de incertezas, de nojo.

Contudo, parece-me que o texto do nosso leitor/crítico é um sintoma do nosso tempo, de como anda a literatura "de sucesso". Precisão, justeza, economia, clareza, são termos correntes nos jornais, nas relações empresariais, nos discursos políticos, embora a vida demonstre que na realidade nada é preciso, nada é justo, nada é claro. A vida é desperdício, diria meu amigo Silviano Santiago. Mas o mainstream quer que as coisas estejam claras, inclusive que as posições estejam bem delimitadas, cada qual no seu lugar de fala, cada qual no seu nicho identitário e regional. Dividir para governar melhor é uma técnica de controle. A literatura, com os tais romances de sucesso, cumpre assim o seu papel dentro da ordem do capitalismo total, em que vivemos: quanto mais divididos em nossos nichos de certezas inamovíveis, menos poder temos.

Quanto a mim, venho lendo alguns livros antigos. Um deles é Yo, el supremo, do escritor paraguaio Augusto Roa Bastos. Levante o dedo quem leu! Trata-se de um abismo, de um grande labirinto, em que o leitor se perde pela história das independências dos países latino-americanos (portanto, da nossa des-colonização), ao mesmo tempo em que se perde entre dois tempos históricos, e tudo a partir de uma voz narrativa "bífida", que está no presente (ditadura de Stroessner, exílio) e no passado (ditadura ilustrada de Francia). Cada frase de Roa Bastos é um abismo e um labirinto. Ao final, não há respostas.

Agora atravesso esse romance-mar que é o Genji Monogatari (The Tale of Genji), um romance escrito por uma autora japonesa do século XI, Murakasi Shikibu (leio na tradução de Royal Tiller). Ela era rival de Sei Shonagon, do belo Livro de Cabeceira. Ambas começaram a escrever numa língua/linguagem ao mesmo tempo feminina e universal, e recriaram a língua literária japonesa, que ainda dependia do chinês, que era estudado e praticado prioritariamente pelos homens. Já tinha começado a ler há alguns anos, e retomei agora. Aqui o abismo é não apenas histórico e cultural, mas de prolixidade. Trata-se de um livros de histórias de histórias de histórias, é como essas bonecas russas que vão se abrindo e revelando bonecas menores. É um livro infinito, mas ao mesmo tempo cada página dele nos fala do básico da vida: o amor, a inveja, o poder, o ciúme, a beleza, a arte, o ódio, a natureza. Estranhamente, ao ler Murakasi, sinto-me estar relendo Proust. Ou As mil e Uma Noites.

E enfim descubro o que há na literatura que me fascina: os livros se conectam entre si como as árvores se conectam por suas raízes mais profundas. A literatura é uma floresta. E uma floresta nunca é justa, clara, precisa, agradável. Nunca se vê o sentido de uma floresta, muito menos à noite. O sentido de uma floresta é o que não se sabe. É o mistério. "Aragem do infinito, absolutas estrelas". Definitivamente, não vou ler o que não tem raízes profundas. Dane-se o sucesso: fico com a literatura.


 

ADALBERTO MÜLLER é professor de teoria literária na Universidade Federal Fluminense (UFF), ensaísta, tradutor e poeta. Poesia completa, de Emily Dickson (Ed. UnB; Unicamp, 2020) conta com tradução sua. Lançou, também no ano passado, o livro de contos O traço do calígrafo (Ed. Medusa).

 

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