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Mulheres de Letras, Brasil Século XIX

por Laila Thaís Correa e Silva*


O ponto de partida para nossa breve reflexão é: o cânone literário nacional (e, também, internacional) tem sexo. Em geral, quando nos referimos à literatura considerada dentro do escopo dos “clássicos”, ou seja, leituras indispensáveis que moldaram a nossa percepção sobre o que seria a cultura nacional, citamos nomes masculinos. Porém, vale frisar, não nomeamos esses clássicos como “literatura escrita por homens”, mas, como: a Literatura Nacional, por excelência. Não vou citar exemplos, em sua maioria localizados no século XIX e nas primeiras décadas do século XX, pois este texto é dedicado exclusivamente a elas: as literatas brasileiras do século XIX.[1]


Convidamos as leitoras e os leitores a refletir e ponderar sobre a nossa formação literária, e descobrir autoras que conviveram e dividiram as páginas dos jornais cariocas com os “grandes mestres imortais”, em fins do século XIX. Dentre os vários nomes de literatas que poderíamos listas aqui, três nomes tiveram destaque neste período devido ao valor literário e, principalmente, político de suas contribuições para a imprensa feminista e de grande circulação: Josephina Álvares de Azevedo (1851-1913), Ignez Sabino (1853-1911) e Délia, pseudônimo de Maria Benedicta Câmara Bormann (1852-1895).


Estas escritoras manifestaram anseios políticos e demandas específicas, reivindicando direitos e um lugar social às mulheres brasileiras, especialmente após a proclamação da República, momento em que se acreditava na ampliação dos direitos femininos, principalmente o sufrágio feminino. No âmbito da imprensa feminista, compreendemos o apagamento de mulheres como Josephina Azevedo, Ignez Sabino e Délia, devido ao posicionamento político de seus escritos e suas trajetórias profissionais permeadas pela militância.


Uma das mais destacadas pesquisadoras sobre imprensa feminista no século XIX brasileiro, Zahidé Lupinacci Muzart, explicita que o esquecimento de determinadas escritoras e o papel da crítica contemporânea a elas, ressalta o caráter político desse esquecimento e dessa marginalidade. Assim, as literatas do século XIX não foram excluídas e esquecidas somente por terem sido mulheres, o que já seria um motivo extremamente relevante à época; mas, e, sobretudo, por terem sido feministas,[2] atuantes e críticas às desigualdades de gênero, classe e raça.


Os exemplos citados por Muzart são Josephina Álvares de Azevedo, Ana Aurora do Amaral Lisboa, Ildefonsa Laura César e Maria Firmina dos Reis, esta escritora negra e maranhense que com a obra Úrsula (1859) teria sido a primeira escritora negra brasileira. Como contraponto, a autora dá um exemplo marcante, contemporâneo às escritoras acima citadas, Júlia Lopes de Almeida:


(...) Todos a elogiavam como um exemplo de mãe, em primeiro lugar. Não foi uma feminista militante, embora em sua obra, nas entrelinhas, haja muita ideia ‘forte’ escondida. Mas concluindo (...): as senhoras que foram louvadas, tiveram grande apoio da crítica masculina em sua época. Outras, como Délia (Maria Benedita Bormann), de ideias mais livres, sobretudo em relação ao sexo como o apoio ao divórcio, foram totalmente apagadas. Porém, no cômputo geral, todas ficaram esquecidas, militantes ou colaboracionistas, senhoras ou cortesãs! (MUZART, 2013, p. 3)

A experiência de frustração e de serem classificadas como “personagens socialmente inúteis” foram constantes desde o primeiro momento em que as mulheres iniciaram suas atividades no mundo da escrita; ainda assim, ousaram fazê-lo e romperam com estereótipos, construindo espaços de sociabilidade e trocas de ideias em busca de direitos e reconhecimento e não se sujeitaram ao arrebatamento diante das frustrações com os rumos políticos desfavoráveis e o acirramento das interdições para a participação feminina em várias esferas da vida pública. Muito além de uma decepção com a Abolição e a República, dois marcos sociais e políticos desejados que, de fato, frustraram as expectativas de várias escritoras. De modo geral, as experiências das mulheres de letras alcançaram níveis sociais, culturais e políticos de extrema marginalidade. Portanto, o conceito de “gênero” e a perspectiva da história das mulheres são cruciais para a reflexão que propomos às leitoras e leitores, tendo em vista que o debate teórico que nossos questionamentos suscitam não poderia ser abordado em separado ao processo de articulação e desenvolvimento da literatura nacional do final do século XIX.



Partindo do dado empírico patente de que existiram muitas mulheres exercendo a escrita no Brasil do século XIX,[3] e, também, fora do Brasil, perguntamos: o que elas diziam? Como se inseriram na imprensa brasileira do século XIX? Quais foram os seus projetos literários? Como a imprensa feminista se mobilizou em torno de pautas específicas que diziam respeito à inserção da mulher na educação, na política e no mundo do trabalho, especialmente no período de mudança política e social de fins do século XIX no Brasil? Para responder a essas perguntas, a leitura dos jornais feministas começando pelo A Família: jornal literário dedicado à educação da mãe de família foi crucial. A Família é extremamente emblemático para a caracterização do período estudado, além da grande atuação de Josephina Álvares de Azevedo e Ignez Sabino, A Família apresenta uma ampla gama de colaboradoras, exclusivamente do sexo feminino, de várias regiões do Brasil, uma correspondente feminista e atuante na causa do voto feminino em Paris e outra na África portuguesa, isso possibilita observarmos como se dava a dinâmica de redes de comunicação entre escritoras e as estratégias adotadas para o apoio mútuo.


As possíveis respostas e hipótese que pudemos aventar até então enfatizaram a hostilidade e a indiferença da crítica literária composta por homens que interditaram, de vários modos, os textos escritos pelas mulheres, provocando a não circulação de obras e a não participação das escritoras em associações literárias como o célebre exemplo da formação da Academia Brasileira de Letras (1897) que não admitiu o ingresso de mulheres, e constitui um fator relevante para o esquecimento e apagamento das obras escritas por mulheres no Brasil e em outros países.


Desse modo, a imprensa feminista foi a principal via de articulação e divulgação de obras e ideias políticas forjadas pelas mulheres do século XIX. A diferenciação entre imprensa feminista e imprensa feminina é um ponto chave para compreendermos a forma pela qual as mulheres de letras que classificamos como combativas travaram diálogos, redes de apoio mútuo e estabeleceram-se como profissionais da escrita e literatas. A imprensa feminista é aqui compreendida como representada por jornais e revistas fundados e dirigidos por mulheres preocupadas em defender a emancipação do sexo feminino, via obtenção de direitos iguais em relação aos homens. Assim, em seus editoriais de estreia perceberemos o propósito declarado e mantido, ao longo das edições subsequentes, de ideias como a educação feminina voltada ao exercício de profissões geralmente desempenhadas por homens e a defesa da participação política da mulher, com a conquista do sufrágio feminino e o direito de ser votada, exercendo cargos políticos, exemplo patente dramatizado pela peça teatral de Josephina Álvares de Azevedo, O voto feminino (1890).


Encontraremos em alguns desses periódicos o apoio à escrita de autoria feminina, com a atuação exclusiva (ou quase exclusiva, no caso de A mensageira) de mulheres em seus quadros de colaboradores. Como exemplos de jornais feministas do século XIX temos, além de A Família e A mensageira, O Sexo Feminino (Campanha, MG- Rio de Janeiro, 1873-1889, que se tornou O Quinze de Novembro do Sexo Feminino (Rio de Janeiro, 1889-1890), no Sul do país, O Corymbo (Rio Grande, RS, 1884-1944) e O Escrínio (Bagé, RS- Santa Catarina, RS, Porto Alegre, 1898-1910), dentre muitos outros. O primeiro jornal feminista brasileiro teria sido fundado pela escritora e professora Maria Josefa Barreto Pereira Pinto, natural de Viamão, Rio Grande do Sul, que após a viuvez fundou uma escola primária mista e o periódico Belona Irada contra os Sectários de Momo, em 1833. Seu jornal tinha propósitos políticos, e sua redatora “não era lady, era uma trabalhadora e uma mulher ´de faca na bota’”. No entanto, segundo Muzart, o Jornal das Senhoras (1852-1855), de Joana Paula Manso de Noronha (1819-1855) foi considerado, na maioria dos estudos, como o primeiro empreendimento do periodismo feminista e Joana uma das primeiras jornalistas ‘brasileiras”, contudo, o periódico de Joana estreou em 1852 e sua redatora era argentina, exilada no Brasil em virtude da ditadura de Rosas (MUZART, 2013, p. 2-3). De todo modo, Maria Josefa e Joana sofreram com o esquecimento político de seus legados pioneiros.


A imprensa feminina, por outro lado, estava voltada ao público feminino, e ao que à época pensava-se constituir o restrito universo feminino do lar, da família, do casamento e da maternidade. Exatamente por isso, os jornais femininos eram dirigidos, em sua maioria, por homens que pretendiam reiterar a mulher como ente passivo e subordinado ao marido e ao âmbito familiar. Assim, revistas como A Estação ofertavam ao público leitor editoriais de moda, dicas para a organização e decoração da casa, etiqueta e boas maneiras, ou seja, um guia para a esposa bela, recatada, submissa e caseira, que buscava agradar o marido e vestir bem a si e aos filhos. Todavia, ainda assim, alguns desses jornais femininos poderiam apresentar uma contrapartida que se rebelava, discretamente, contra tais ditames rígidos, aproveitando-se das fissuras provocadas pela força da imposição patriarcal de pais e maridos zelosos da moral e bons costumes. Assunto para outras conversas literárias sobre escrita e mulheres no século XIX...


 

* Laila Thaís Correa e Silva, Doutoranda em História Social (Unicamp/Fapesp).

 

NOTAS DE RODAPÉ

[1] Para uma sistematização do tema do cânone e do gênero, ver: MUZART, Z. L. A questão do cânone. ANUÁRIO DE LITERATURA, Florianópolis, n.3, p. 85-94, 1995. [2] O termo ‘feminista’ já era empregado pelas mulheres no período, como exemplo, o editorial de A Família, em 29 de abril de 1894 destacou o movimento feminista “manifestado por toda a parte”. [3]Consideramos para essa afirmação o trabalho da pesquisadora Zahidé Lupinacci Muzart e os três volumes organizados por ela e publicados pela extinta Editora Mulheres de Florianópolis, os quais recuperaram textos escritos por mulheres de todo o Brasil no século XIX e começo do XX: MUZART, Zahidé L. (org.). Escritoras brasileiras do século XIX: antologia. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul; EDUNISC (V. 1, 1999, 960 p.; V. 2, 2004, 1184 p.; V 3, 2009,1143 p.)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


MUZART, Z. L. A questão do cânone. ANUÁRIO DE LITERATURA, Florianópolis, n.3, p. 85-94, 1995.

MUZART, Zahidé Lupinacci. “Uma espiada na imprensa das mulheres no século XIX”. Revista Estudos Feministas. Vol. 11, n. 1. Florianópolis, 2013.

MUZART, Zahidé L. (org.). Escritoras brasileiras do século XIX: antologia. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul; EDUNISC (V. 1, 1999, 960 p.; V. 2, 2004, 1184 p.; V 3, 2009.

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