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Longe demais das capitais: entrevista com Douglas Ceccagno


{ } Entrevista concedida a André Tessaro Pelinser, Vitor Cei e Letícia Malloy em abril de 2020.


Douglas Ceccagno nasceu em 1979, em Farroupilha (RS), e cresceu em Bento Gonçalves (RS), onde reside atualmente. Professor e escritor, Ceccagno realizou graduação e mestrado na área de Letras na Universidade de Caxias do Sul (RS) e obteve doutorado em Teoria da Literatura pela PUC-RS, com estágio de pesquisa na Université Paris 3 – Sorbonne Nouvelle. Publicou seus primeiros poemas em 1996, inicialmente em jornais. No ano de 2006, participou no Grupo Neblina, formado pelos também poetas João Claudio Arendt, Clóvis Da Rolt e Marli Tasca, do qual resultou a antologia poética intitulada Calendário. Em 2015, foi publicado seu primeiro volume individual de poesia, Rábula, pela editora wwlivros. Três anos depois, Ceccagno estreia na narrativa, com os contos de Ópera subterrânea, editado pela Metamorfose, em 2018. No ano seguinte, Ceccagno foi o escritor homenageado da 34ª Feira do Livro de Bento Gonçalves.


Na entrevista que segue, concedida por e-mail em abril de 2020 aos professores André Tessaro Pelinser (UFRN), Vitor Cei (UFES) e Letícia Malloy (Unifal-MG), Ceccagno lança um olhar sobre sua carreira e seu processo criativo, refletindo sobre as motivações iniciais despertadas pelo contato com a música. Congregando as qualidades de professor, escritor e crítico, o autor discorre, ainda, sobre essas diferentes dimensões na composição de sua obra e sobre as relações entre literatura e ensino na área de Letras no contexto brasileiro. Tendo em vista suas pesquisas e sua formação na área teatral, Ceccagno aborda também o papel da dramaturgia na universidade.


Esta entrevista é resultado do projeto “Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas”, coordenado por Cei, com a colaboração de Pelinser e Malloy. Nas reflexões expostas por Ceccagno encontra-se a motivação do projeto, que se apresenta como um esforço de mapear a produção literária brasileira do final do século XX e início do século XXI a partir da perspectiva dos próprios escritores. A partir da realização e publicação de uma série de entrevistas com autores de todas as regiões do país, o projeto pretende constituir-se em atividade voltada para a formação de leitores de literatura brasileira contemporânea, além de oferecer um material de pesquisa para os futuros críticos e historiadores da literatura brasileira das últimas décadas.



Douglas Ceccagno, poeta, professor, pesquisador.
Douglas Ceccagno

Seu percurso literário se iniciou em 1996, quando você começou a publicar poemas em jornais. Em seguida, participou do Grupo Neblina, do qual resultou o volume coletivo intitulado Calendário – antologia poética do Grupo Neblina (edição dos autores, 2006). Recentemente, você retornou à poesia, com a publicação de Rábula (wwlivros, 2015), e estreou no conto, com Ópera subterrânea (Metamorfose, 2018). Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor?

Foi tudo muito aos poucos. Eu sempre fui leitor, mas inicialmente era mais interessado em música: queria ter uma banda de rock – tive várias –, mas para isso queria também escrever boas letras. Os letristas de quem eu gostava eram leitores e deixavam suas referências explícitas nas canções. Sou da geração que cresceu ouvindo rock brasileiro e que via MPB na televisão. Então, eu quis ler o que esses artistas liam e desenvolvi uma fascinação pela palavra escrita. Comecei, portanto, escrevendo letras de música, logo poemas, e os contos apareceram um pouco mais tarde, mas ainda na adolescência. Como eu não sabia – e ainda não sei – o que era preciso fazer para ser escritor – quantos textos, quantos livros –, eu só fui escrevendo, esperando um dia, claro, ser reconhecido. Acho que comecei a me considerar escritor mesmo quando passei a receber e-mails me convidando a participar de atividades como escritor, não só como professor.



Na Apresentação de Rábula, Atilio Bergamini destaca como característica de sua obra “uma soturna melancolia irônica – e, como toda melancolia, autoirônica –, que resgata, do esfarelamento da linguagem e da vida, elementos para ainda contar, ainda cantar, ainda viver.” Você poderia nos falar um pouco sobre as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário?

Não posso dizer que eu tenha um projeto literário além do intuito de continuar escrevendo. Tenho alguns livros publicados, mais alguns inéditos, e vejo inúmeras diferenças entre eles. Concordo com a “melancolia irônica” no caso do Rábula, mas não me comprometo a manter, nos próximos livros, qualquer característica dos trabalhos que já fiz.

Cada autor possui um método e estilo de trabalho próprios. Você é professor universitário, escritor, crítico e já trabalhou com teatro. No ato da escrita, há algum diálogo entre essas diferentes funções e formações?

Sim, deve haver. Não há como separar tudo em caixas com cores diferentes, mas eu considero isso uma coisa positiva. Sempre achei que o estudo acadêmico da literatura poderia contribuir com a minha escrita, e contribui mesmo, não tanto na hora de escrever, mas na hora de revisar, limpar o texto dos excessos, trocar as palavras que não ficaram bem. A leitura atenta e o conhecimento teórico dão opções ao escritor na hora de modificar o texto. Além disso, a carreira universitária me permite permanecer em contato com as minhas leituras durante muito tempo, e me obriga a aprofundar o nível de compreensão dos textos, se eu tiver que levá-los para a sala de aula ou para a pesquisa. Essa prática de anotar os textos, de atentar para as escolhas dos outros escritores também abre possibilidades para a escrita, sem dúvida.

Em sua trajetória como pesquisador, você se debruçou sobre o teatro de Qorpo-Santo no mestrado e de Nelson Rodrigues no doutorado. Recentemente, você estudou aspectos práticos e teóricos do teatro com o grupo Tem Gente Teatrando. Como essas duas dimensões convergem no seu percurso? Você tem planos de atuar ou escrever para teatro?

O teatro passou de um gosto esporádico para um arrebatamento. Começou no mestrado, na verdade, quando minha opção de pesquisa foram as comédias de Qorpo-Santo. Não escolhi pelo gênero, mas porque esse era um escritor que me interessava. E, mesmo assim, era um mestrado em Letras, portanto minha abordagem recaía sobre o texto, não sobre a montagem. Ao mesmo tempo, comecei a fazer umas oficinas de teatro aqui e ali, mas o intuito era só conhecer melhor a linguagem. No doutorado, eu achei que continuar pesquisando textos dramáticos seria uma forma de marcar o meu lugar como pesquisador e mergulhei de cabeça no gênero, porque os textos todos me interessavam. Pesquisei Nelson Rodrigues, mas também pesquisei vários autores modernos franceses e li muito do teatro do absurdo. Essa estética eu vejo que deixou marcas no Ópera subterrânea, meu livro de contos; não nos diálogos, mas nas situações. Há alguns anos, retomei os estudos de teatro no espaço cultural Tem Gente Teatrando. Fui só para participar de uma peça e acabei fazendo um curso profissionalizante. Hoje eu tenho carteira profissional de ator. Mas não me vejo como um escritor de teatro, embora tenha escrito uma comédia curta e o monólogo de final do curso. Agora, também não sei o que vou inventar daqui a um ano ou dois. Como pesquisador, continuo sendo da área da literatura: meu estudo acadêmico do teatro é um estudo literário. Eu não pesquiso a montagem das peças, mas o texto, como literatura.

Ainda no que se refere à dramaturgia e à docência, como você vê, na qualidade de professor e pesquisador, o trabalho com teatro nas universidades e nos cursos de Letras no Brasil? A dramaturgia tem espaço na academia e no ensino no país?

Não posso falar muito do teatro nas universidades porque não conheço bem a realidade dos cursos específicos. Conheço professores que trabalham nessa interface entre teatro e literatura e que levam o texto dramático para a sala de aula. No caso dos cursos de Letras, a gente sabe que depende muito de o professor fazer a escolha dos textos com os quais vai trabalhar, aí a narrativa tem um lugar predominante. Às vezes, até vemos nos programas das disciplinas que o teatro vai ter que se consolar com uma aula em um semestre inteiro, porque tem muito romance para ser trabalhado, além do conto e um pouco de poesia; aí precisa adaptar. É muito bom trabalhar com texto dramático em sala de aula, começando pela leitura, porque ele pressupõe a interação dos alunos desde o começo. E, aliás, um gênero que nos rendeu as tragédias gregas, Shakespeare, Molière, Beckett ou Nelson Rodrigues não pode ser desprezado pelas aulas de literatura.

O Brasil tem como um dos grandes desafios a democratização do acesso à literatura e a outras artes e, por consequência, a tarefa educativa de formar público. Como professor universitário que leciona não apenas em cursos de Letras, como você avalia o papel das universidades na tarefa educativa de formar leitores? O que você vê a partir de sua experiência em sala de aula? Qual é o papel da literatura nesse trabalho?

Na minha experiência, e não vou generalizar, percebo que os estudantes de Letras costumam ter mais experiência de leitura que os outros. E isso se justifica, se considerarmos o curso universitário que eles escolheram. Mas, em geral, o cenário é catastrófico. Tem alunos de ensino superior que não lembram de ter lido um livro na vida. Não digo literatura, digo qualquer livro. Existe a responsabilidade do indivíduo por isso? Existe. Mas também é preciso ver que ele faz parte de uma sociedade que relega a literatura a um papel insignificante. Agora, como coletividade, também já entramos na era de achar que tudo se pode aprender com vídeos explicativos, o que acaba acarretando grandes prejuízos aos estudantes no que tange ao uso da linguagem, à compreensão leitora, à administração das emoções, à sensibilidade estética e à constituição de um repertório cultural significativo. Tudo isso se desenvolve com a leitura, e principalmente com a leitura literária. Fomentar a leitura é um dever de todas as instituições de ensino, desde a educação básica até a universidade.

Você nasceu e reside na Serra Gaúcha (RS), um espaço distante de centros culturais e acadêmicos hegemônicos brasileiros. Você percebe alguma influência das dinâmicas culturais próprias às relações entre centro e periferia no reconhecimento crítico da sua obra? Ou, ampliando a questão, no reconhecimento de escritores nessa mesma posição? Nesse contexto, quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje?

Há alguma vantagem e muitas desvantagens em residir longe das capitais. A vantagem é que é possível, depois de muita teimosia, consolidar o seu trabalho numa esfera regional, até porque você compete com menos nomes na memória das pessoas. Então, depois de tanto tempo estudando literatura, dando aula, pesquisando e escrevendo livros, as pessoas começam a olhar você com alguma seriedade. Porém, é inevitável a percepção de que o coleguismo nas regiões mais metropolitanas ainda exerce muita influência na inserção do escritor em um sistema literário mais amplo. Por isso, apesar da profusão de novas editoras, creio que a entrada no mercado editorial para quem está escrevendo de um lugar periférico ainda é bastante difícil. Na verdade, essas relações são mais complexas do que isso, porque às vezes o mercado elege uma determinada periferia para ser mostrada, enquanto as outras são escondidas. Essa também é uma discussão importante.

Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária brasileira contemporânea.

Eu gosto de descobrir coisas novas, mas elas podem ser novas para mim, mesmo que não tenham sido publicadas recentemente. Como eu ministro várias disciplinas de literaturas em inglês, tenho me voltado aos clássicos e aos contemporâneos anglófonos. De qualquer modo, tento ficar por dentro dos lançamentos literários brasileiros, e para isso me nutro de publicações especializadas. Aí vejo o que anda acontecendo, busco alguns livros e às vezes tenho boas surpresas. Mas confesso que não leio tanto de literatura brasileira contemporânea quanto gostaria. Para mim, o que faz boa literatura é, basicamente, o uso criativo da linguagem e a abordagem inteligente do tema. Acredito que o livro precisa trazer inquietações, mesmo que o tema pareça banal. Também considero importante o diálogo com uma tradição literária, quando o autor sabe quem são seus precursores; e ele não precisa declarar explicitamente: a gente percebe. Não gosto de ler livros em que o autor acha que está inventando o que todo mundo já fez. Mas isso vale para todos, não só para os contemporâneos. A verdade é que não compartilho dessa obsessão pela novidade que existe por aí. Para mim, tudo que eu leio é contemporâneo.

Muitos escritores e intelectuais têm mantido atividade constante nas redes sociais, sobretudo para expressar engajamento político. Você mantém atuação discreta no Facebook, utilizando-o majoritariamente para a divulgação do seu trabalho. Por quê? E como vê essa face do intelectual contemporâneo?

Há sempre um desconforto em trabalhar nas redes sociais, porque, na verdade, é isso mesmo: você está lá trabalhando para o dono do Facebook ou de qualquer outra rede. Como meus livros são publicações independentes, eu tenho que divulgar, aí acabei abrindo uma página para fazer isso, mas também para postar curiosidades do mundo literário. Basicamente, é uma reunião de conteúdo sobre literatura vindo de diversas fontes, então quem curte a minha página recebe atualizações de vários sites diferentes e também fica sabendo dos meus projetos. Eu sei que já existe muita gente usando essas redes de modo criativo, formatando seus escritos para caberem em um tweet ou uma imagem de Instagram. Na verdade, os escritores sempre se adaptaram aos meios disponíveis; não é algo a se condenar; exceto a banalização do conteúdo, mas isso é algo que pode acontecer em qualquer plataforma, nova ou velha. Talvez eu publique nas redes também um dia, mas quando penso nisso sempre lembro que estou sem tempo.

A política não é o motivo condutor de sua obra, porém certa visão desiludida do mundo comparece em alguns de seus textos, como no poema “Zen”, do Calendário: “quando cai da corda bamba / o futuro se estilhaça – / só não fere a imensa graça / de não se ter esperança”. Ou no sujeito poético de Rábula, que questiona: “bater em alguém é fácil / já tentou ioga no espelho?” Como você vê a relação entre literatura e posicionamento político, ou, em sentido mais amplo, entre literatura e política? Escrever é um ato de resistência?

Pode ser um ato de resistência, como pode ser um ato de violência, ou de reafirmação de valores ultrapassados. Os textos têm a intenção que nós, autores e leitores, atribuímos a eles. O fato de se relacionar a escrita, e as artes, de um modo geral, a um lugar de enfrentamento ou de resistência tem a ver com a marginalização que elas vêm sofrendo num momento em que o governo federal e uma parte considerável da população as desprezam, mas não podemos esquecer que a literatura também pode ser uma forma de divulgar os valores dominantes. E isso não tem relação com a qualidade do texto. Quanto à minha escrita, eu considero impossível dissociá-la das questões políticas, às vezes até a despeito do autor. Quando eu vejo, as questões políticas estão lá. Porém, é importante não querer plantar soluções definitivas, não fazer proselitismo, não ser panfletário. A literatura tem que se limitar a colocar a pulga atrás da orelha do leitor, não matar a pulga para ele; porque às vezes ele nem percebeu a pulga ainda, ou nem se incomoda com ela. Mas a gente continua criando pulga. Neste momento, o texto literário pode ser uma forma importante de resistência, sim; principalmente ao dar sentido à nossa vivência coletiva e ao apontar outras formas possíveis de viver nesse mundo.

Nos últimos anos, o Brasil e o mundo têm presenciado o fortalecimento de ondas reacionárias que trazem matizes autoritários, opressores, fascistas, racistas, misóginos e homofóbicos. Sua obra mostra que o escritor não pode se calar diante de tal contexto. O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade?

Essas ondas reacionárias aparecem de vez em quando, mas, nesse caso, vão acabar consumidas pela exposição contínua dos próprios absurdos. As pessoas vão se cansar de ter suas liberdades e seus direitos usurpados só porque não aguentam ver os outros tendo as mesmas liberdades e direitos. Agora, eu acredito ainda que essas coisas são cíclicas. Não acho que os problemas políticos vão se resolver de uma vez por todas em algum momento, porque sempre vai haver gente querendo incomodar os outros ou levar vantagem; gente que acha que precisa ter direitos que os outros não têm e que vai continuar defendendo seus privilégios. Então, o jeito é seguir denunciando e brigando, cada um com seus meios, para que a balança pese mais para o lado do respeito e da igualdade. É uma atividade difícil e muitas vezes cansativa, mas os que a praticam estão com as melhores companhias.


 

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