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"Humilhados e ofendidos" (1861): a transição de Dostoiévski

por Rafael Voigt


De há muito tempo, a editora 34 vem publicando excelentes traduções de escritores russos. Em seu catálogo, encontram-se, entre outras, as principais obras de Dostoiévski.


Em setembro, em tradução de Fátima Bianchi, professora de literatura russa da USP, a editora 34 lançou Humilhados e ofendidos (1861). Esta constitui uma obra de transição de Dostoiévski, em que já se anunciam elementos de sua prosa de maturidade, composta por uma série de “romances ideológicos”.





Humilhados e ofendidos foi a primeira experiência de Dostoiévski na seara do romance-folhetim. Os capítulos da obra foram lançadas mensalmente na revista literária O tempo, dirigida pelo próprio escritor e seu irmão Mikhail.


A obra marca o retorno de Dostoiévski à cena literária de Petersburgo, após o período em que foi condenado a trabalhos forçados na Sibéria, por motivo de suas ligações revolucionárias em Petersburgo.Nesse romance, Dostoiévski pretendia refletir sobre a vida nessa capital do império russo, valendo-se de estilo realista moderno, mas com forte compromisso com aspectos sociais, morais e psicológicos.



Dostoiévski em 1861, ano de lançamento de "Humilhados e ofendidos"

Humilhados e ofendidos retrata a figura de Ivan Petróvich, um desafortunado escritor de Petersburgo, que exerce a função de narrador e protagonista da história. Há claramente um aspecto autobiográfico por trás desse personagem. A crítica ao capitalismo e a sua interferência na vida social recobre o enredo, principalmente em torno da figura do príncipe vilão Piotr Aleksándrovitch Valkóvski e suas ações sobre as demais personagens, como seu filho Aliócha, apaixonado por Natacha Ikhmiênev, sem desconsiderar a relação estreita desses personagens com o próprio narrador Ivan Petróvich.


A crítica de sua época dividiu-se ao analisar o estilo e o enredo da obra. No posfácio da edição da editora 34, a tradutora Fátima Bianchi destaca, entre outros, a exaltação de Dobroliúbov sobre a orientação humanista do romance, colocando-o como “o fenômeno literário de maior qualidade do ano”, mas ao mesmo tempo chama a atenção para o fato de que Grigóri Kuchelióv-Biezborodko considerava frágil a construção artística do livro.


O lançamento da nova tradução de Humilhados e ofendidos coincide com a chegada da biografia Dostoiévski: um escritor em seu tempo, de Joseph Frank, publicada pela Companhia das Letras, com tradução de Pedro Maia Soares.




O estadunidense Joseph Frank (1918-2013), professor de algumas das principais universidades dos Estados Unidos, como Princeton e Stanford, dedicou boa parte de sua vida à pesquisa sobre Dostoiévski.


Segundo Joseph Frank, Humilhados e ofendidos é, sem dúvida, o mais fraco do seis romances principais pós-siberianos.


Em sua análise, no entanto, Frank indica um ponto crucial de Humilhados e ofendidos: a junção entre dos enredos paralelos. O primeiro em relação ao que se destacou acima em torno dos personagens Ivan Petróvich, o princípe Valkóvski, Aliócha e Natacha. O segundo, nos dizeres de Joseph Frank, introduz um elemento gótico de mistério, em relação à órfã Néli e seu avô de aparência excêntrica que morre em uma rua, após sair de um café e ser seguido pelo narrador Ivan Petróvich. Néli é o ponto de encontro entre os enredos paralelos.


Joseph Frank acentua o sentimentalismo exagerado de Dostoiévski na composição do romance como responsável pelas críticas depreciativas que recebeu.


Do sofrimento egoísta que atravessa as relações entres os personagens, como as de Natacha-Ikhmiéniev, Natacha-Aliócha-Kátia, Néli-Ivan Pietróvitch, um dos principais biógrafos de Dostoiévski considera que o tema do “egoísmo” atingirá no “futuro Dostoiévski" uma dimensão metafísica e será relacionado com outros aspectos ideológicos. Assim, observa-se, pela análise de Frank, alguns dos elementos que permitem entrever em Humilhados e ofendidos o caminho para a maturidade literária de Dostoévski.


Interessante, ainda, na análise do estudioso norte-americano é sua capacidade de notar o intertexto em Dostoiévski, fruto de algumas das leituras do próprio escritor. Na construção do personagem Valkóvski, há alusões à tradição libertina do romance francês do século XVIII, com Choderlos de Laclos e Marquês de Sade. O que não deixa de ser uma extensão do grande tema do “egoísmo” e o espírito capitalista. E o egoísmo é um dos temas ressaltados e modo enfático por Joseph Frank.


Ler Humilhados e ofendidos, contando com as pesquisas de Frank, amplifica as possibilidades interpretativas desse romance e o situa no limiar da fase mais profícua e madura de um dos maiores escritores de todos os tempos, com uma genialidade exteriorizada em sua capacidade de não descuidar da narração da história enquanto de maneira arguta destrincha as características mais profundas da sociedade russa de seu tempo e da própria humanidade.




 

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