O título do novo folheto da revista {voz da literatura} aponta para a (des)ordem mundial de hoje.
Explorando o potencial da narrativa ficcional, a matéria apresenta aos leitores o jornalista Jota Brasil, personagem que faz ecoar memórias da queda do muro de Berlim, mas que não perde sua ligação com as tensões sociais e políticas da América do Sul dos nossos dias.
Nas mãos de Jota Brasil, o livro "As relações internacionais depois de 1945", de Maurice Vaisse (Editora WMF Martins Fontes, 2013) ganha outro significado.
por rafael voigt
Jota Brasil desembarcou na Berlim Ocidental em uma noite fria, em que o termômetro do aeroporto Berlim-Tegel marcava 12º c.
A viagem na classe econômica da TAP o deixou novamente com dores na coluna, principalmente para alguém que pouco se interessava por qualquer atividade física e apenas corria atrás de notícias diariamente.
*
Recebeu a ligação do Diretor do jornal na véspera, quando estava abrindo a porta do apartamento. O barulho estridente do telefone o fez correr:
− Jota, você está sendo escalado como nosso correspondente em Berlim. Pode ir para o aeroporto, que Joana se encarregará de seu embarque no próximo voo para Lisboa e de lá fará conexão para chegar a Berlim ocidental.
− É...
Não pôde completar a frase, uma pergunta qualquer sobre se ele era o nome certo, já que trabalhava na cobertura política dentro do Congresso Nacional...
Embarcou no aeroporto de Brasília só com uma pequena mala de mão.
*
Acenou para o táxi. Pegou o nome do hotel que Joana havia anotado às pressas e colocado no bolso de seu paletó. Em inglês, deu o destino para o motorista.
*
− O senhor ouviu a notícia de que amanhã será um dia histórico? Muitos estão dizendo que o muro de Berlim cai amanhã...
Foi no caminho para o aeroporto JK que essa fala do taxista surpreendeu Jota. A partir daquele momento, entendeu o que não foi explicado pelo Diretor.
*
Pela janela um pouco embaçada da Mercedes-Benz, Jota avistou uma parte do Portão de Brandemburgo (na placa: “Brandenburger Tor”). Havia uma multidão nas proximidades e uma parte em cima de um dos mais triste símbolos do pós-guerra. Disse apenas “Stop”. O motorista entendeu que ele queria descer ali mesmo. Entregou alguns dólares, sem contar exatamente o valor apontado no taxímetro. Deu instruções para que sua mala fosse entregue no hotel.
Correu para o meio da multidão. Muitos gritos em alemão não podia entender. Era um misto de alegria e emoção jamais visto em outras manifestações que cobriu.
Tentou tomar nota, esboçando um relato do que via, para depois comunicar o Diretor.
Ao ser quase esmagado naquele espaço apinhado de gente, seu caderno de notas desapareceu, pisoteado por muitos pés. Não tinha o que fazer...
Repentinamente, sentiu alguém lhe dando um forte abraço que o levantou a alguns centímetros do chão. Era um alemão forte com um bigode que cobria a boca. Em uma das mãos segurava uma garrafa de cerveja de uma marca que Jota não conhecia. O fortão apontava para cima e, em alemão, perguntava se queria subir.
Parecia mesmo que a trunfo maior era de quem era alçado ao muro. Sem esperar resposta, o amigo bávaro, com ajuda de outros ao redor, projetou Jota para o alto.
De cima, o repórter enxergava uma nova Berlim e uma nova Alemanha. Suas retinas, desde então, retiveram essa imagem, que ainda lhe aparece em sonhos.
*
Jota recordou tudo isso com olhos marejados. Ao ser perguntado qual destino escolheria se recebesse ligação parecida do Diretor hoje, emendou rápido:
− Passaria uma noite em algum lugar da América do Sul: Chile, Equador, Bolívia, Colômbia, Venezuela ou Peru... para ver outros muros que existem mas não são de concreto.
*
Ao final dessa conversa, presenteei Jota com um livro que li há pouco tempo: As relações internacionais depois de 1945, do historiador francês Maurice Vaïsse, lançado pela WMF Martins Fontes em 2013. Obra que já passou da décima edição em sua versão francesa e foi lançada em primeira edição em 2005.
Em pouco mais de trezentas páginas, o autor da obra narra de forma concisa os principais acontecimentos das relações internacionais após os estragos da Segunda Guerra Mundial, cujos efeitos podem ser sentidos ainda hoje na (des)ordem internacional.
Percorrendo brevemente o sumário da obra, Jota logo notou que Maurice Vaïsse divide a narrativa histórica em sete capítulos. Passa por períodos como o nascimento do mundo bipolar e da Guerra Fria entre eua e a extinta urss, o processo de descolonização da Ásia e África, as Guerras no Oriente Médio, os choques do petróleo e suas consequências na economia do mundo nos anos 1970 e 80, o fim do mundo bipolar com a dissolução da urss. Além de chegar ao mundo que deu novo guinada no início do século 21 com a guerra ao terror.
Por curiosidade, Jota procurou no livro qualquer menção que Vaïsse tivesse feito ao muro de Berlim. Sem que eu pedisse, começou a ler em voz alta um trecho da página 224:
Antes da construção do muro de Berlim, quase três milhões de cidadãos alemães-orientais já haviam voltado com seus pés. O fim da hemorragia humana permitiria o nascimento de um verdadeiro Estado, de uma Prússia vermelha, nacional-marxista? Poder-se-ia pensar que, com o muro auxiliando, a Ostpolitik consolidaria a RDA. Na verdade, nada disso ocorre, e o êxodo dos alemães-orientais se precipitou em agosto-setembro de 1989, contornando o muro pela brecha húngara. À hemorragia se acrescentam manifestações nas ruas contra os dirigentes. Finalmente, em 9 de novembro de 1989, o "muro da vergonha" e a fronteira interalemã são entreabertos graças a uma decisão administrativa do governo da RDA. Desde a manhã de 10 de novembro, milhares de berlinenses orientais se lançam em direção ao Oeste, para retornarem a suas casas pouco tempo depois. É a queda do símbolo mais gritante da guerra fria e da divisão da Alemanha, mas o êxodo continua, a um ritmo de 2 mil por dia, pois o nível de vida na RFA é duas ou três vezes superior ao da RDA.
Jota interrompeu a leitura em tom comovente, para me perguntar sobre dados biográficos do autor do livro.
Expliquei brevemente que Maurice Vaïsse é um historiador francês especializado em relações internacionais e defesa. Nascido antes do fim da Segunda Guerra, em 1942, foi professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, ministrando a disciplina de História das Relações Internacionais. Foi também docente na cadeira de história contemporânea na Universidade de Reims.
Acrescentei que Vaïsse é membro do Conselho de Arquivos Diplomáticos da França e um dos responsáveis pela publicação dos arquivos diplomáticos franceses. Entre 1981 e 1995, liderou a Associação para a pesquisa sobre a paz e a guerra (Arpege). De 1986 a 2000, dedicou-se também ao grupo de estudos franceses da história das armas nucleares (Grefhan), além de presidir o Centro de Esdudos de História da Defesa.
— Você aceita mais uma xícara de café?
— Não, Jota. Obrigado. Agora preciso ir. Tenho que voltar para casa.
— Demorou para você aparecer por aqui...
Já havia estendido a mão para apertar a de Jota, quando ele se virou e entrou em seu escritório. De lá, trouxe uma pequena caixa e colocou na mão que praticamente deixei estendida, esperando-o voltar.
— Essa é uma pequena lembrança daquele dia 9 de novembro de 1989.
— E o que é?
— Abra e sinta com as próprias mãos.
— ... Não!... Um pedaço do muro?!
— Recolhi vários pedaços naquela noite e costumo presentear todos aqueles que têm, como você, interesse em destruir muros e construir novas histórias para o mundo.
*
Comments