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Bíblia: Livro do Desassossego

por Frederico Lourenço**


A expectativa que leva muitas pessoas a ler a Bíblia é que a Bíblia lhes dê respostas. Na realidade, o que encontram é um livro que, sobretudo, lhes dá perguntas. E depressa se apercebem de que não se trata de um livro: na verdade, são muitos livros, pois a Bíblia é uma biblioteca com livros escritos desde o século VIII a.C. ao século I-II d.C.

E esse livro tem várias identidades. A forma que se pensaria ser a mais antiga do Antigo Testamento (a Bíblia Hebraica que vêem na foto) é a forma do texto mais recente: mais recente do que a forma grega do Antigo Testamento produzido no século III a.C.; baseia-se numa forma muito antiga do texto hebraico (que não chegou até nós). A Bíblia Hebraica que temos completa baseia-se num manuscrito do século XI d.C.

 (Arquivo pessoal do autor. Livros editados pelo sei alemão Deutsche Bibelgesellschaft)
(Arquivo pessoal do autor. Bíblias editadas pelo selo alemão Deutsche Bibelgesellschaft)

Outra forma marcante (e, quanto a mim, lindíssima) da Bíblia é a sua versão latina, cuja forma mais conhecida e lida é a chamada Vulgata.

O Novo Testamento é a parte autenticamente grega da Bíblia, porque os seus textos foram escritos em grego. Não existe, até hoje, comprovação factual para a lenda de que o Evangelho de Mateus foi escrito noutra língua que não o grego. Quanto aos outros textos que compõem o NT, são textos pensados e escritos de raiz em grego.

A Bíblia contém textos geniais. Não dá para comparar o que não é comparável: mas, para mim, o Evangelho de João não fica atrás de Sófocles em beleza literária; o 1º Livro de Samuel não fica atrás de Shakespeare; e Eclesiastes ganha pontos a esses dois grandes artistas da palavra poético-filosófica, Schopenhauer e Nietzsche.

A Bíblia é uma biblioteca de textos que nos questionam. Dão-nos certezas sobre algumas coisas e dúvidas sobre tantas outras. Talvez porque são textos humanos, como nós. Não foram escritos por anjos; e nenhuma passagem da Bíblia alega que o texto tenha sido escrito por Deus.

Mas também são textos que nos transcendem: porque, para lá do desassossego que provocam, há neles um sopro de Algo para o qual só ocorre, de facto, a palavra «Divino».

 

(Texto originalmente publicado por Frederico Lourenço em 27 de novembro de 2022, em seu perfil no Instagram: @prof.frederico.lourenco. Reproduzido aqui com autorização do autor.)

 


FREDERICO LOURENÇO, escritor e tradutor, é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu do grego a Ilíada e a Odisseia de Homero (Ed. Penguin), duas tragédias de Eurípedes (Hipólito e Íon), entre outro autores. É responsável também pela mais completa tradução da Bíblia para o português, com três volumes já publicados pela editora Companhia das Letras. Em 2022, no Brasil, lançou os volumes Grécia revisitada: ensaios sobre cultura grega (Ed. Carambaia) e Latim do Zero e Nova Gramática de Latim (Ed. Kírion). Ainda neste ano, saiu em Portugal seu mais recente trabalho: Evangelhos Apócrifos (Quetzal Editores).

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