top of page
Foto do escritor{voz da literatura}

Antonio Candido, o crítico literário de jornal

Atualizado: 13 de ago. de 2018

por Joana Rodrigues

Neste mês de julho, Antonio Candido completaria 100 anos. Não seria difícil encontrá-lo em uma comemoração familiar, entre netos e as filhas, Ana Luísa, Laura e Marina. Até se poderia pensar que, ao lado de sua esposa, a professora Gilda de Mello e Sousa, ele retomaria os bem humorados causos que gostava de contar nesses encontros mais intimistas. Mas se a reunião se estendesse aos amigos, haveria de ocupar um espaço muito maior que as salas de aulas da USP, da Unicamp e da Unesp (campus de Assis), por onde reuniu um número expressivo de alunos e alunas ao longo de quatro décadas de docência. Isso sem contar nos colegas militantes da literatura, dos direitos humanos e da política que se espalharam em uma diversidade de classes sociais, de idades e de escolhas ideológicas. Agora, se para a celebração do centenário fossem chamadas as amizades fora do Brasil, os festejos tomariam dimensões maiores.


Mas ficamos com a memória que nos ajuda a alimentar a história. E puxamos o fio que uniu Candido à vizinhança intelectual latino-americana, ao voltarmos para o começo dos anos 1960, quando o jovem professor de Literatura chegou a ter – por um dia – Vinícius de Moraes entre os estudantes do curso de literatura brasileira ministrado no verão daquele ano em Montevideu, e lá conheceu o crítico uruguaio Ángel Rama. Foi ali, no ambiente universitário das dependências da Udelar (Universidad de la República), que os dois iniciaram uma amizade para além das linhas do mundo acadêmico, permeada pela militância da crítica literária e pela afetividade.

Entre tantos amigos, Rama foi um dos que esteve presente de forma intensiva na trajetória de Candido. De idades e traços de personalidades distintas – Rama era oito anos mais jovem que Candido –, eles se mantiveram unidos pela vontade política de imprimir à literatura latino-americana outros contornos, passando a definir um cenário que incluía a literatura brasileira.


Com o clássico Formação da Literatura Brasileira Momentos Decisivos recém-lançado, Candido, que então havia migrado da Sociologia para as Letras em passagem definitiva, passou a trocar ideias e correspondência com o crítico uruguaio, desde então. A simbiose entre os dois amigos resultou em um farto acervo intelectual, registrado em parte pela correspondência trocada entre eles, que teve organização numa publicação recente de Pablo Rocca e em projetos comuns como a criação da Biblioteca Ayacucho, uma coleção de mais de 300 títulos de obras voltadas para humanidades, em que não faltaram autores brasileiros. Isso sem falar na participação conjunta de projetos como a criação de um Centro Latino-Americano, que não vingou, mas que resultou na publicação dos três volumes de América Latina Palavra, Literatura e Cultura. Obra essa organizada pela professora chilena Ana Pizarro que contou com a colaboração de cerca de cem estudiosos distribuídos pela Europa, Estados Unidos e América Latina e da dupla Candido e Rama, a quem pertencia a ideia original do projeto, que, entre outras coisas, ambicionava a realização de uma obra maior sobre a história da literatura da América Latina.


Afora, a amizade, Candido e Rama tiveram, em comum, nessa relação de congenialidade intelectual, a atuação como críticos literários na imprensa. Cada um em seu tempo e em seu país, eles tiveram as páginas dos jornais como parte de seu laboratório de escrita. Candido, na década de 1940, assinou a coluna semanal ou rodapé, como se chamava na época, Notas Críticas de Literatura na extinta Folha da Manhã hoje Folha de S. Paulo durante um ano e meio, transferindo-se em seguida para o Diário de São Paulo, em represália a um movimento de censura, com tons fascistas que tomava conta da redação do periódico na época. Nessa tarefa de risco, como ele sempre assumiu, estava a perspicácia intelectual de reconhecer entre autores novos, aqueles que traziam a literariedade em primeiro plano, como o fez ao mirar acertadamente em nomes como Clarice Lispector, Ledo Ivo, Jorge Amado, João Cabral de Mello Neto, entre outros.


Porém, nem só de nomes consagrados na Literatura viviam as análises do estreante crítico de jornal, que trazia na bagagem a atuação na revista Clima, editada por um grupo de amigos intelectuais de Candido, entre eles Decio de Almeida Prado, quando teceu os comentários iniciais a respeito do jovem poeta Carlos Drummond de Andrade.


Arraigado em suas raízes sociológicas, Candido levou doses de alertas ao seu leitor, no sentido de que ajustassem as lentes quando se deparassem com obras de caráter literário duvidoso. Ficaram com suas palavras, o registro daquele tempo: “Quando eu comecei a fazer crítica, eu fiz nome bastante depressa, sobretudo porque eu creio que os críticos eram quase todos católicos ou liberais e eu era de esquerda”. Tal atitude, segundo Candido, causou certo barulho na época da ditadura do Estado Novo.


Imbricado entre o analítico e o ensaístico, Candido iria se mostrar um crítico com um pé no didático, capacidade devedora da docência que, aliada à clareza de estilo, elegância e ao recato da linguagem, se juntou a doses de descontração e bom humor quando abria diálogos – e a interatividade – com os leitores, bem ao estilo de uma conversa ao pé do ouvido.


Nessa configuração de crítico de rodapé, Candido admitiu a importância do jornalismo em seu laboratório de escrita, ao ressaltar que a experiência foi fundamental: “E devo dizer que para mim, pessoalmente, o jornalismo foi a escola de crítica. Eu não aprendi a fazer crítica na universidade, eu aprendi a fazer crítica no jornal”.


Ángel Rama, por sua vez, também se iniciou no jornalismo na década de 1940 e até sua morte, no ano de 1983, exercia a função de crítico em diversas publicações, sendo que foi no semanário uruguaio Marcha, um de seus pontos altos como crítico literário. Nutrido por um estilo mais ensaístico e eloquente, ele trouxe para os leitores uruguaios, autores e análises com um toque de originalidade da crítica jornalística, ao ancorar seu olhar bifocal para a tradição e para a novidade. O que tempos depois, veio a se ramificar em volumes clássicos da crítica literária como La Ciudad Letrada (1984), Transculturación Narrativa en América Latina (1982) e Las Máscaras Democráticas del Modernismo (1985). Esse olhar de bifocalidade de Rama trouxe para o público do periódico Marcha nesse ano 1960 um olhar mais detalhado de autores como Felisberto Hernández, Juan Carlos Onetti, Clara Silva, Mario Benedetti, Armonía Sommers e Francisco Spíndola, que começavam a despontar nas letras latino-americanas.


A exemplo de Candido, o crítico uruguaio teve no jornalismo o seu laboratório de escrita, na medida em que pôde exercitar suas reflexões a respeito de obras e movimentos da literatura latino-americana. Em particular nesse ano de 1960, voltando-se para autores uruguaios, na defesa e construção de uma identidade literária de seu país e de um espaço geopolítico social chamado América Latina que ainda vive às voltas com essa diversa vizinhança literária.


Nessa faceta comum aos dois críticos e amigos, que em idiomas distintos, em épocas e em espaços diferentes dedicaram-se a essa atividade rareada entre os atuais veículos de comunicação, como os jornais, ambos deixaram como testemunho a relevância do espaço da imprensa para a formação do pensamento crítico do leitor comum, aquele que não está nas salas de aulas das universidades, e segue sem aceso às bibliotecas e aos acervos culturais ainda restritos a uma parcela da população latino-americana. Como intelectuais de nosso tempo, Antonio Candido e Ángel Rama fazem falta nas páginas impressas e virtuais desse universo de ideias que se escorregam em quantidade e carecem de reflexões críticas.


{n. 4 | agosto | 2018}



 

{JOANA RODRIGUES é doutora em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP), e professora de Literaturas em língua espanhola na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) . É autora do livro Antonio Candido e Ángel Rama: Críticos Literários na Imprensa (Editora Unifesp, 2018), resultado de sua tese de doutorado.}





{} Antonio Candido e Ángel Rama: críticos literários na imprensa

_________________

Joana Rodrigues

Ed. Unifesp

2018

288 p.














 

{baixar este artigo}



0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Commentaires


bottom of page