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A literatura e a literatura no ENEM 2020

Atualizado: 20 de set. de 2021


por Rafael Voigt*


A prova de "Linguagens, Códigos e suas Tecnologias" do ENEM é composta de 45 questões. Excetuando-se as cinco questões de língua estrangeira, há 40 questões para língua portuguesa, literatura, artes, educação física e tecnologias da informação e comunicação.

Da edição de 2020, aplicada no último domingo (17), tomamos como parâmetro de análise a Prova Amarela, concentrando-se no bloco de “Linguagens” relativo às questões de 6 a 45. Há razoável diversidade de questões baseadas em textos literários, com ênfase, em boa medida, em manifestações modernistas, contemporâneas e canções. No total, são 17 questões com aproveitamento de textos ou fatos literários. Passamos, em alguns parágrafos, a fazer um brevíssimo sumário de cada uma delas, para depois reflexionar sobre a descaracterização e artificialidade dos estudos literários que tais questões denotam e como há um perigoso estímulo à leitura funcional.

A questão 8 apresenta texto do livro Casos de Minas, de Olavo Romano (1982). O fragmento textual explora a intenção do personagem do “caso” ao empregar um ditado popular. A 9 versa acerca de fragmento do conto “O importado vermelho de Noé”, de André Sant’Anna, publicado na coletânea Os cem melhores contos, organizada por Ítalo Moriconi. A ênfase do item concentra-se no uso de frases curtas e repetições.

A 13 destaca versos de um cartaz colado em um poste: “Poesia em cartaz”, segundo o título do texto. Trata de diferentes suportes para a veiculação da poesia. Na 14, há um trecho do livro Os da minha rua, do angolano Ondjaki, em que o candidato deve interpretar a significação da passagem narrativa.

A 16 merece destaque, por levar ao público do ENEM reportagem de Guilherme Novelli, publicado na Revista Continente (set. 2016), a respeito do Slam de Corpo, para a performance de poemas em Libras. A 19 traz um excerto do romance pré-modernista Canaã, de Graça Aranha, para análise da expressividade da linguagem empregada pelo autor.

A 20 divide-se em dois textos. O primeiro são versos da canção “Águas de Março”, de Jobim. E o segundo, uma interpretação de Arthur Nestrovski sobre a origem da canção, a qual remete para o poema "O caçador de esmeraldas", de Bilac, e canção de J. B. Carvalho, do Conjunto Tupi.

A 27 estrutura-se a partir do poema “Retrato de homem”, de Laís Corrêa de Araújo, no livro Cantochão (1967), e aborda a descrição lírica do objeto do poema. A 31 destaca fragmento de Em busca de Curitiba, de Dalton Trevisan, e explora a percepção do leitor na relação do narrador com o espaço urbano de Curitiba. Na 33, temos outra canção. Agora “Leão do Norte”, de Lenine e Paulo César Pinheiro, para identificação de diferentes manifestações culturais nordestinas presentes na letra da canção.

Na 35, há um relato de Manuel Bandeira sobre a composição do poema “Vou-me embora para Pasárgada”. O objetivo é que o candidato identifique a função da linguagem predominante no texto. O “Hino à bandeira”, música de Francisco Braga e letra de Olavo Bilac, aparece na 37, para que o candidato interprete o significado simbólico da descrição presente no hino.

Na 38, aparece trecho do romance Os ratos, de Dyonélio Machado, para uma questão sobre a relação da ficção modernista com os conflitos sociais. Lima Barreto e seu Triste fim de Policarpo Quaresma, na 39, serve para questionamento sobre o uso da norma-padrão por parte do protagonista em determinado episódio do romance. Caetano Veloso aparece com a sua canção “Alegria, alegria” (1967) na 41, para servir ao propósito de abordagem de “tipos textuais”. Com o propósito de estabelecer uma ligação com a música popular contemporânea, a 43 explora a letra de “Seu delegado”, do Trio Forrozão, sobre a intenção do autor em um dos versos.

Fechando o bloco de Linguagens, na 45 consta trecho de conto de Domingos Pellegrini: “A maior ponte do mundo”, de seu livro Melhores contos (2005).

Por esse apanhado das questões de linguagem relacionadas à literatura, logo se observa que a literatura serve, via de regra, apenas como pretexto para análise meramente linguística, cerrada apenas a formalidades da linguagem e sem se ocupar de uma compreensão social, histórica e estética da linguagem literária.

Das 45 questões do bloco de Ciências Humanas, em três delas encontramos mais algumas “literárias”. “O cântico da terra”, poema de Cora Coralina, ilustra a 49, na interpretação das relações no campo. A 52 traz alguns versos de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) no poema “O guardador de rebanhos”. A 56 é composta de trecho de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, para interpretação que dispensa conhecimento da obra.

A abordagem da prova elaborada por banca de responsabilidade do INEP/MEC institucionaliza o desinteresse pela leitura literária, uma vez que esta, no Exame, aparece, como dissemos, a serviço da análise linguística de superfície e de manuais escolares engessados em estudos da linguagem pouco afeitas a uma leitura da linguagem estética e sócio-histórico da literatura, sem nenhum esforço para se observar nas obras literárias parte de nossa formação cultural.

De acordo com a vigente Matriz de Referência do ENEM para a prova de "Linguagens, Códigos e suas Tecnologias", a competência 5 diz respeito em grande parte à literatura:

"Competência de área 5 - Analisar, interpretar e aplicar recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura das manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção.

H15 - Estabelecer relações entre o texto literário e o momento de sua produção, situando aspectos do contexto histórico, social e político.

H16 - Relacionar informações sobre concepções artísticas e procedimentos de construção do texto literário.

H17 - Reconhecer a presença de valores sociais e humanos atualizáveis e permanentes no patrimônio literário nacional. "

Nesse passo, para alcançar as competências e habilidades inerentes à leitura e ao fazer literários, os candidatos do ENEM devem estudar o que o programa do Exame recomenda. Com isso cabe aqui reproduzir os objetos de conhecimento descritos em anexo na Matriz de Referência sobre o "estudo do texto literário":

"Estudo do texto literário: relações entre produção literária e processo social, concepções artísticas, procedimentos de construção e recepção de textos - produção literária e processo social; processos de formação literária e de formação nacional; produção de textos literários, sua recepção e a constituição do patrimônio literário nacional; relações entre a dialética cosmopolitismo/localismo e a produção literária nacional; elementos de continuidade e ruptura entre os diversos momentos da literatura brasileira; associações entre concepções artísticas e procedimentos de construção do texto literário em seus gêneros (épico/narrativo, lírico e dramático) e formas diversas.; articulações entre os recursos expressivos e estruturais do texto literário e o processo social relacionado ao momento de sua produção; representação literária: natureza, função, organização e estrutura do texto literário; relações entre literatura, outras artes e outros saberes."

Há, evidentemente, um descompasso entre a proposta indicada na competência e nos objetos de conhecimento sobre a literatura e o modo como a literatura vem sendo explorada no Exame.

Com ensino esquemático e pouca leitura de literatura, pode-se “gabaritar” todas as questões. Pouco importam qual será o fragmento literário ou os gêneros textuais abordados. Com pouca leitura e um repertório de soluções linguísticas trabalhadas à exaustão em sala de aula ou em cursos on-line de “edutubers” “resolvem-se” ou “matam-se as questões” de literatura. Na verdade, seria mais oportuno dizer “aprofunda-se” o desincentivo à leitura literária e “mata-se” a literatura como dimensão essencial da vida humana.

A prova do ENEM revela-se, assim, um sintoma (uma “prova”) de ausência, nas políticas governamentais para a área de educação, de um plano amplo e consistente de incentivo à leitura de literatura, nos mais diferentes níveis, desde a educação infantil à educação superior. A literatura tem farta contribuição a dar na formação humana de cidadãos brasileiros críticos diante da realidade sociopolítica que nos cerca. Esse “direito à literatura”, como direito humano inalienável, é negado veementemente e sequer pode ser escamoteada de uma prova com as características do ENEM. Importa, ainda, e sempre, indicar o texto “Direito à literatura”, de Antonio Candido, para uma ampliação da visão tão acanhada de literatura presente no Exame.

Seria argumento inócuo dizer que do Governo Bolsonaro nada podemos esperar no sentido de uma política pública como proposta aqui. Concordo, é verdade, não posso me contrapor. Entretanto, as políticas educacionais não podem estar sujeitas ao desmantelamento proposto pelo governo atual, deve ser política de estado, permanente, sem solução de continuidade.

Após a chegada da tão desejada e esperada vacina contra a covid-19, teremos que investir, após a imunização coletiva, em um bom remédio que combata o atraso educacional a que nos sujeitamos com governo conservador, reacionários e sem qualquer sensibilidade real para a área de Educação e Cultura. A presença amorfa da literatura no ENEM, por exemplo, é só o sintoma de uma doença educacional mais grave. Infelizmente, até 2022, toda discussão séria acerca da leitura literária e de um plano nacional de incentivo à leitura continuará apenas como uma dessas proposta utópicas das quais não podemos nos cansar, sob pena de eliminar um dos mais vigorosos traços de humanidade em nós e de sonhar com a reversão desse quadro de apagamentos culturais. A não ser que em âmbito estadual e municipal se mitigue a inoperância do governo federal...


***


Após escrever este texto, consultamos estudos e pesquisas sobre a literatura nas edições do ENEM. E logo ficamos sabendo que, na verdade, a perversão da abordagem da literatura vem de longa data no ENEM, ou seja, um problema que se arrasta por muitos governos, como reflexo de problemas mais espinhosos nas políticas públicas para a educação. Um dos estudos muito se aproxima aos argumentos expostos neste artigo e aprofunda a análise:

FISCHER, Luís Augusto; LUFT, Gabriela; FRIZON, Marcelo; LEITE, Guto; LUCENA, Karina; VIANNA, Carla; WELLER, Daniel. A Literatura no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Nonada Letras em Revista. Porto Alegre, ano 15, n. 18, p. 111-126, 2012. Disponível: https://www.redalyc.org/pdf/5124/512451672005.pdf


Outra indicação é a tese de doutorado Retrato de uma disciplina ameaçada: a literatura nos documentos oficiais e no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), de Gabriela Luft (UFRGS, 2014): https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/103887/000929096.pdf?sequence=1&isAllowed=y



 

RAFAEL VOIGT, editor da revista {voz da literatura}

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